Talvez você tenha visto nesta última semana o grande debate entre Apple e FBI. Pode não parecer muita coisa a uma primeira vista. Talvez você não use um iPhone; talvez você imagine que por se tratar do FBI, o assunto tenha pouco a ver com nós brasileiros. Mas tem. Tem a ver com o mundo inteiro. 

Nossa missão neste texto é fazê-lo entender exatamente como essa disputa afeta sua vida. 

O que está acontecendo?
Em dezembro de 2015, aconteceu um massacre no Departamento de Saúde Pública cidade de San Bernardino, na Califórnia. Foram 14 mortos e 22 feridos graças ao ataque terrorista, que envolveu tiroteio e uma tentativa de explosão. O casal que executou o ataque foi morto pela polícia. 

O caso não parou por aí. Por ser considerado um ataque terrorista em solo dos Estados Unidos, foi aberta uma ampla investigação sobre o caso. Uma das peças-chave para a investigação é o iPhone 5c de um dos terroristas, que está devidamente encriptado. Isso significa que nem o FBI nem a Apple consegue descobrir o que está armazenado ali. Não é possível, nem mesmo, tentar desbloquear o aparelho com força bruta (isto é, por tentativa e erro na hora de digitar o PIN), já que 10 tentativas erradas apagam permanentemente as informações armazenadas. 

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Já se discutiu a possibilidade de usar a impressão digital dos terroristas mortos para desbloquear o aparelho, mas isso não é possível num iPhone 5c. Também é discutível se um dedo morto conseguiria enganar o leitor de digitais de um iPhone mais recente. 

O que o FBI quer?
Que a Apple crie uma brecha proposital na criptografia do iPhone que permita o acesso às informações de investigados, neste e em outros casos. A agência recorreu à Justiça americana, que ordenou que a Apple cumprisse o pedido. 

Mais especificamente falando, eles querem um software que possa ser usado para desbloquear o iPhone, instalando um firmware modificado que possibilitasse o uso de força bruta para liberar o acesso ao aparelho, mesmo sem o aval do usuário. A Apple não havia pensado nesta possibilidade quando implantou a criptografia como padrão no iOS 8. 

É aí que entra o pepino: se a Apple fechar esta possibilidade, está enfrentando o FBI e a Justiça, e a ação pode ser a faísca que faltava no embate contra a criptografia forte nos Estados Unidos nos últimos tempos. Se não fechar, está criando um precedente para que outros governos façam o mesmo. 

Por que a Apple não quer?
Criar uma brecha proposital em seu produto vai contra o interesse da empresa em vários sentidos. A primeira é o dano à sua imagem. A empresa sempre pode afirmar com segurança que seu software era mais seguro, livre das vulnerabilidades que são encontradas, por exemplo, no Android. 

O segundo problema é um pouco mais amplo. Criar uma vulnerabilidade para as autoridades é criar uma vulnerabilidade que pode ser usada para outros fins, também. Nada impede que o cibercrime descubra e comece a aproveitar esta brecha para começar a roubar dados dos usuários da Apple. Isto é um perigo. 

Também não há como garantir que o próprio governo não possa abusar desta vulnerabilidade, criada, supostamente, com um fim nobre. No passado, já foi provado que eles têm o hábito de espionar cidadãos americanos e monitorar também os hábitos de estrangeiros online. 

O jeito certo, segundo a Apple, é colaborar com as autoridades por meio de mandado judicial, oferecendo as informações que estão ao seu alcance quando necessário, mas jamais criando ou mantendo uma brecha proposital em seus produtos. 

Não uso iOS. O que isso tem a ver comigo?
Várias empresas já se colocaram ao lado da Apple nesta disputa. Entre as companhias que suportam a causa da maçã estão concorrentes gigantes como Google e Microsoft. Outros grandes nomes que incluem Twitter, Facebook, Dropbox, WhatsApp, também já demonstraram apoio por meio do grupo RGS (sigla para Reformem a Vigilância Governamental), que pede uma mudança no modo como o governo americano espiona os usuários de serviços online. 

O apoio faz todo o sentido: se a Apple for realmente obrigada a cumprir esta ordem, nada impede que outras empresas tenham que passar pelo mesmo no futuro. Será criado um precedente, uma jurisprudência, que determinaria que todas as outras empresas deveriam criar brechas em seus produtos quando solicitados pela Justiça. 

E assim, com o tempo, todos os serviços online precisariam manter uma brecha aberta para as autoridades. Novamente: não há como garantir que o cibercrime não aproveitará a vulnerabilidade, nem que o governo a usará apenas com fins nobres. 

Não moro nos Estados Unidos. O que isso tem a ver comigo?
Se a Apple não fechar a brecha que permite a instalação de um firmware debilitado, ninguém está realmente a salvo, mesmo que nós, brasileiros, não tenhamos nada a ver com o FBI. O cibercrime pode, e vai procurar maneiras de aproveitar esta vulnerabilidade.

Contudo, mesmo que a brecha se limite ao território americano, isso não garante nada. Foi criado um precedente para que outros governos no mundo exijam o mesmo da Apple e de outras empresas. 

Por isso é importante que a empresa tenha o apoio necessário para barrar esta ordem nos Estados Unidos: é necessário evitar que isso aconteça com ela (ou outras empresas) em outros lugares do mundo também.