Nesta semana, o combate à Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), viu uma reviravolta. Diante da crise, começou-se a discutir o uso de um medicamento normalmente utilizado para o tratamento da malária, artrite reumatoide, lúpus e outras condições no enfrentamento da pandemia. Chamada de hidroxicloroquina (Cloroquina), o remédio mostra resultados promissores neste momento, que tem feito Donald Trump apressar os estudos sobre a eficácia do remédio.

O remédio não é novo. Ele foi criado nos anos 1940, e desde então tem se mostrado seguro para o uso em humanos. Isso fez com que alguns especialistas se empolgassem com o uso do medicamento no combate da pandemia, porque o fato de já ser antigo conhecido pode acelerar os testes.

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O estudo em questão foi realizado na França, onde a droga foi testada em um grupo de pacientes com Covid-19 para analisar a sua eficácia. Didier Raoult, pesquisador da Universidade de Aix-Marselha, testou o remédio com 36 pessoas divididas em três grupos de pacientes: um recebeu apenas o medicamento, outro recebeu a droga e um antibiótico chamado azitromicina, enquanto o terceiro grupo recebeu um tratamento convencional, o que é conhecido no meio científico como grupo de controle.

Ao final dos testes, o pesquisador concluiu que o grupo tratado com a hidroxicloroquina viu uma redução significativa da carga viral, e os resultados foram ainda mais notáveis com a combinação com a azitromicina. Ao final do estudo, 70% dos pacientes tratados com os remédios foram considerados curados em seis dias, enquanto o grupo que não recebeu o medicamento só tinha 12,5% de curados. A redução no tempo de cura poderia ajudar a liberar leitos em hospitais, o que poderia diminuir consideravelmente a crise.

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Os resultados fizeram com que Donald Trump e a Administração de Drogas e Alimentos dos EUA (FDA, na sigla em inglês) se contradizerem publicamente. Trump chegou a dizer que o medicamento estava aprovado para uso contra o coronavírus, citando o conhecimento da droga em seu uso contra a malária como justificativa. No entanto, a FDA negou veementemente a afirmação, explicando que ainda são necessários testes clínicos mais detalhados para a aprovação.

Por que é preciso cuidado?

A crise global causada pela pandemia cria uma expectativa gigantesca por tratamentos que se mostrem eficazes, e qualquer notícia positiva tende a criar burburinho. No entanto, é necessário cuidado com curas milagrosas.

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O grande problema reside na limitação dos estudos feitos até o momento. Como explica Ary Serpa Neto, médico e pesquisador do Hospital Israelita Albert Einstein e professor livre docente pela Faculdade de Medicina da USP, há etapas que não podem ser queimadas no estudo dessas drogas para garantir que elas são seguras e eficazes no tratamento do coronavírus.

Para definir se um medicamento é ou não eficaz contra uma doença, é necessária a realização de pelo menos três etapas de experimentação. A primeira delas é a experimentação em humanos, normalmente saudáveis, para entender melhor o funcionamento da droga no organismo. A segunda etapa é um estudo de menor escala, realizado em pacientes para entender a dosagem ideal, o tempo de tratamento e efeitos adversos.

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A terceira etapa é a responsável por definir se uma droga é aprovada para o uso no tratamento de uma doença. Nesta fase, com testes em maior escala, com um cálculo estatístico para definir um número mínimo de pacientes que devem participar do experimento. Com resultados positivos, o medicamento poderá ser usado no tratamento.

É importante, no entanto, respeitar uma metodologia rígida nestes testes. Serpa Neto conta que é fundamental que os estudos clínicos sejam randomizados e mais amplos, para eliminação de vieses. Afinal de contas, é possível que os pacientes que apresentaram resultado positivo após tratamento com a hidroxicloroquina simplesmente tivessem uma melhor saúde do que aqueles que não receberam. Com grupos maiores e seleção aleatória, é possível eliminar esse tipo de distorção nos resultados.

Ou seja: sem estudos mais profundos, não é possível cravar com certeza que os resultados vistos no experimento francês realmente sejam capazes de acelerar a cura do coronavírus. Sem testes adequados, eles podem agravar os problemas dos infectados, alerta Serpa Neto.

Essas etapas todas são fundamentais na hora de definir se a droga é realmente segura. O médico conta que não são incomuns casos de testes que desprovaram a eficácia de remédios que tiveram bons resultados em menor escala. Por exemplo, um medicamento eficaz para lidar com a arritmia cardíaca acabou se provando danoso a pessoas com problemas cardíacos.

No caso do coronavírus, a excitação em volta da hidroxicloroquina tem um efeito colateral preocupante. Temendo a Covid-19, muitas pessoas podem começar a correr atrás do medicamento e começar a causar uma falta do produto no mercado para quem já precisa dele para o tratamento de doenças para os quais ele já tem eficácia reconhecida.

Apesar da cautela, isso não quer dizer que o medicamento seja ineficaz. Serpa Neto conta que os resultados positivos da hidroxicloroquina precisam ser analisados e estudados para saber se eles se repetem em larga escala. É necessário que países e governos apoiem esses experimentos para que essa resposta seja alcançada o mais breve possível e que haja um esforço para que os pacientes brasileiros sejam incluídos nos testes.

Anvisa não indica o uso

A informação de que o medicamento pode ser eficaz contra o coronavírus, infelizmente, foi suficiente para brasileiros começarem a correr para farmácias para comprar o remédio, e já há relatos nas redes sociais de pessoas com dificuldades de encontrar a droga para tratar de doenças que dependem dela de forma comprovada. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no entanto, deixa claro que não é recomendável comprar o medicamento para uso contra a Covid-19 até o momento.

Confira o comunicado da agência:

Diante das notícias veiculadas sobre medicamentos que contêm hidroxicloroquina e cloroquina para o tratamento da Covid-19, a Anvisa esclarece que:

  • esses medicamentos são registrados pela Agência para o tratamento da artrite, lúpus eritematoso, doenças fotossensíveis e malária; 
  • apesar de promissores, não existem estudos conclusivos que comprovam o uso desses medicamentos para o tratamento da Covid-19. Portanto, não há recomendação da Anvisa, no momento, para a sua utilização em pacientes infectados ou mesmo como forma de prevenção à contaminação pelo novo coronavírus; e
  • a automedicação pode representar um grave risco à sua saúde.