Enquanto o coronavírus se espalha pelo planeta, governos do mundo inteiro tentam desenvolver formas de conter a transmissão e identificar mais rapidamente pessoas contaminadas antes que elas possam infectar outras pessoas. Dentro desse cenário, uma ferramenta poderosíssima está sendo analisada por vários países pela sua vantagem: ela já está no bolso de bilhões de pessoas ao redor do planeta. O smartphone tem virado arma pela sua capacidade de monitorar a localização de seu usuário em tempo real.

A Coreia do Sul é hoje o maior exemplo de um país que conseguiu controlar o coronavírus. Desde que o governo percebeu a dimensão do problema que teria em mãos, passou a testar ampla e ostensivamente a população para obter diagnósticos rápidos e isolar os contaminados antes que pudessem repassar para o vírus para outras pessoas.

O que não se fala tanto é o componente tecnológico envolvido nesta política tão ampla de testes, que tem o smartphone como peça central. Graças a ele, o governo sul-coreano é capaz de intensificar o combate à Covid-19 utilizando a geolocalização como forma de identificar contaminados.

Quando alguém é diagnosticado com o coronavírus, sua vida é completamente revirada. O governo olha o histórico de uso do cartão de crédito, que permite saber quais estabelecimentos a pessoa visitou, mas talvez mais impactante é o monitoramento do histórico de localização por meio do GPS do smartphone. Com isso, é possível traçar uma linha do tempo de todos os lugares por onde a pessoa contaminada andou.

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Com essa informação em mãos, o governo passa para a parte dois. Isso envolve cruzar a trajetória da pessoa contaminada com a de outras e publicar alertas para todos que potencialmente dela se aproximaram, dando dados detalhados dos locais por onde o paciente infectado passou. Isso serve de orientação para que o público possa se testar e buscar atendimento o mais rápido possível.

Os dados de geolocalização também serve para garantir que as ordens de isolamento estão sendo cumpridas. Com ela, é possível para as autoridades perceber que alguém que tenha suspeita de Covid-19 está saindo para a rua quando deveria ficar em casa. A punição envolve multa pesada, que pode chegar a passar do equivalente a R$ 12 mil.

Outros países no mundo estão adotando a tecnologia de geolocalização. Israel tem emitido alertas para pessoas com suspeitas de infecção. O Reino Unido utiliza a informação de forma anonimizada para entender se as pessoas estão realmente se isolando. Taiwan utiliza a tecnologia de geofencing, criando “cercas” invisíveis ao redor de casas das pessoas que deveriam estar em quarentena para garantir que elas não saiam de casa.

Os contras dessa abordagem

A primeira e mais óbvia questão neste caso é a privacidade. Nem todo mundo quer ter seus passos ostensivamente monitorados e retransmitidos para tantas pessoas, mesmo em uma situação de crise como a do coronavírus. Um cenário no qual governos podem monitorar pessoas em tempo real não é muito distante de distopias da ficção científica.

A Electronic Frontier Foundation (EFF), organização que defende uma série de temas relacionados à liberdade e privacidade digital, faz uma série de apontamentos críticos sobre a abordagem e como muitas dessas medidas podem parecer abusivas e pouco efetivas.

Uma das observações do grupo é que, se o número de contaminados no país for grande o suficiente, com transmissão comunitária, tentar definir quem infectou quem se torna imprático e pouco útil. “Se a transmissão comunitária já se tornou comum, rastrear os contatos pode se tornar inviável e retirar recursos de formas mais efetivas de contenção”, diz a organização sobre o assunto.

Outro fator que deve ser levado em consideração é que, por mais que o smartphone já seja uma tecnologia completamente difundida na maior parte do planeta, ainda há quem não tenha um. Quantos idosos deixam de usar smartphone por ter dificuldades com o dispositivo? Quantas pessoas muito pobres têm dinheiro smartphones? Não há como recorrer à tecnologia para monitorar essas pessoas, que, inclusive, correm mais riscos do que a média da população.

Uma complicação observada na Coreia do Sul ligada ao monitoramento de localização das pessoas é que foram observados casos de pessoas que preferiram não buscar atendimento e testes após apresentarem sintomas temendo a exposição dos lugares por onde passaram.

Mas também há dúvidas sobre a eficácia da geolocalização como ferramenta de monitoramento e contenção do vírus do ponto de vista tecnológico. Essas críticas recaem sobre a eficácia do GPS para essa função, que tem um nível de imprecisão muito alto.

A imprecisão do GPS pode chegar a uma casa de 60 metros. Se lembrarmos que as orientações de distanciamento social dos especialistas preveem uma distância de dois metros, não é difícil entender como o método pode gerar muitos falsos-positivos. Muitas pessoas que podem estar “potencialmente infectadas” aos olhos de governos sequer chegaram perto de alguém que realmente estava contaminado, mesmo que os dois “pontinhos” estivessem totalmente sobrepostos no mapa.

O GPS também tem a complicação de não ser capaz de medir altitude, o que significa que mesmo que duas pessoas estejam no mesmo prédio, elas podem estar a vários andares de distância uma da outra, o que torna a informação de geolocalização pouco confiável.

Com tudo isso, a EFF diz que não há clareza sobre a eficácia da utilização da geolocalização para contenção do coronavírus. Se agentes de saúde determinarem que a prática é necessária por motivo de segurança, “esses poderes precisam expirar assim que a crise acabar, conter regras rígidas contra vieses e serem sujeitos a auditorias e garantias estritas”.

E o Brasil?

O Brasil também começou recentemente a utilizar a tecnologia de geolocalização para ajudar a combater o coronavírus no Brasil. O destaque vai para a prefeitura do Recife, que fechou uma parceria com uma empresa chamada In Loco, empresa especializada em soluções de marketing e segurança digital utilizando, como o nome indica, em dados de localização.

Por meio da parceria, a prefeitura do Recife pode planejar ações para garantir o isolamento dos cidadãos. Com os dados, é possível perceber se, por exemplo, um bairro não está seguindo a recomendação, com muitas pessoas na rua. A partir daí, é possível tomar alguma ação, como enviar um carro de bombeiro para o local para avisar as pessoas para que fiquem em suas casas.

Da mesma forma, aplicativos da prefeitura podem ser equipados com a tecnologia, o que permitiria dispensar a presença física para emitir o alerta. Assim, caso percebam um comportamento perigoso em uma região, é possível enviar apenas uma notificação para os celulares das pessoas em vez de precisar direcionar um agente até a área para orientação. É possível identificar se alguma pessoa saiu de casa quando não deve e orientar

Como informou ao Olhar Digital André Ferraz, CEO da In Loco, a empresa está presente em 60 milhões de smartphones no Brasil, sendo que 700 mil destes aparelhos está localizado na cidade de Recife, o que representa cerca de metade da população da capital pernambucana. Os dados são obtidos por meio de aplicativos que contam com a tecnologia da empresa.

Ferraz diz que o processo é voluntário. O usuário verá um alerta para saber se ele gostaria de oferecer seus dados para contribuir com os relatórios para auxiliar no combate ao coronavírus. Segundo o CEO da In Loco, o papel da empresa na parceria é oferecer estes relatórios, e os dados dos usuários são anonimizados, o que diz que nem a empresa, nem a prefeitura pode identificar quem são as pessoas por trás daqueles dados.

Até o momento, o Recife é a única cidade a fechar parceria com a In Loco, mas a empresa diz que várias outras prefeituras já entraram em contato para tentar aplicar a mesma ideia para tentar combater o coronavírus. A ideia da In Loco é disponibilizar sua tecnologia o mais rápido possível pelo país.

A abordagem da In Loco e da prefeitura do Recife é bem diferente do que se tem visto em outros países, principalmente na Coreia do Sul, que utilizam as informações de geolocalização quase como um método de prevenção pela humilhação. André Ferraz defende que o método coreano “é um constrangimento para a pessoa e muito invasivo”, principalmente pela natureza delicada dos dados de localização. “É um tipo de informação muito sensível, porque é coletada passivamente. A pessoa não aperta um botão para declarar por onde ela passou”.C