Muito tem se falado ultimamente em soluções tecnológicas para a contenção de pandemias como o da Covid-19. Principalmente em sistemas para monitoramento de quarentenas, como foi usado na Coreia do Sul e em Recife, e em métodos para automatizar o “rastreamento de contatos”. Ou seja, identificar e alertar pessoas que inadvertidamente tiveram contato com um infectado, seja porque viajaram próximas a ele em um avião ou porque estavam no mesmo restaurante ou sala de cinema.

Vários apps se propõem a realizar esta tarefa. Mas a iniciativa que ganhou mais destaque nos últimos dias foi um projeto conjunto da Apple e Google, que visa integrar o sistema de monitoramento de contatos aos seus respectivos sistemas operacionais para smartphones e tablets: o iOS, iPad OS e Android.

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A ideia parece simples: se o usuário optar por habilitar o rastreamento, seu smartphone receberá um identificador único, como um número de uma carteira de identidade. Cada aparelho transmite, via Bluetooth, seu identificador, ao mesmo tempo em que escuta os identificadores de celulares vizinhos.

Se dois aparelhos “se enxergarem” por determinado tempo, um contato é registrado, e esta informação é enviada a um servidor central. Em caso de uma pandemia, as organizações de saúde teriam acesso ao banco de dados com estes contatos. Isso possibilitaria orientar e avisar as pessoas se elas estiveram próximas de um doente.

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A questão da privacidade

Em teoria, é perfeito. O sistema automatizaria uma tarefa que já é feita pelos profissionais de saúde, e com muito mais precisão. Mas a primeira preocupação com esta tecnologia é a privacidade. Apple e Google afirmam, e inicialmente não há motivos para duvidar, que seu sistema não coleta informações que possam identificar o usuário. Basicamente, ele registra que um aparelho com o ID X esteve próximo dos aparelhos Y e Z na hora H, sem dizer quem são os proprietários dos aparelhos, onde estiveram ou para onde foram.

O problema é que, no mundo moderno, a informação não existe em um vácuo. Os dados coletados pelo sistema da Apple/Google podem até ser anônimos, mas certamente será possível correlacioná-los com outros dados disponíveis para “desmascarar” a identidade de um usuário, expondo-o. Isso não é uma teoria, é uma prática chamada “re-identificação de dados”, tão real e comum que tem seu próprio e extenso verbete na Wikipedia.

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Como resultado, uma pessoa doente pode não procurar os serviços de saúde com medo de ser exposta à comunidade. Foi o que aconteceu em alguns casos na Coreia do Sul, onde alguns usuários assumiram o papel de “vigilantes”. Em posse de extensos dados sobre os doentes publicados pelo governo (que incluíam sobrenome, sexo, ano de nascimento, endereço, profissão, histórico de viagem, contatos e hospital onde foram atendidos), eles passaram a “caçar”, identificar e criticar publicamente pessoas que estariam violando a quarentena.

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A tecnologia não é perfeita

Em um artigo publicado no The Verge, o jornalista Casey Newton aponta outro problema: o Bluetooth não é uma tecnologia precisa para determinar localização ou proximidade, já que o alcance do sinal não tem “granularidade” suficiente.

A recomendação de distanciamento social, por exemplo, é de 1 metro e meio a 2 metros entre as pessoas em locais públicos. Mas se você abrir as configurações de seu smartphone e fizer uma busca por dispositivos Bluetooth nas proximidades, certamente encontrará alguns, porém sem poder identifica-los visivelmente, mas certamente estarão a mais de dois metros de distância.

Em casa, meu smartphone ‘vê’ aparelhos como “C3222” e “JorgeMi9”, que não faço a mínima ideia a quem pertencem. Eles podem ser do vizinho do apartamento ao lado. Ou do outro lado do corredor. Ou do andar de cima, com quem nunca tenho contato. E certamente se encontram além da “distância social” recomendada.

É o que diz o Dr. Farzad Mostashari, ex-coordenador nacional de tecnologia de informação para a saúde do Departamento de Saúde e Serviços Humanos nos EUA. “Se eu estiver em campo aberto, meu dispositivo Bluetooth e seu dispositivo Bluetooth poderão registrar um ao outro, mesmo que você esteja a mais de um metro e meio”, disse Mostashari. “Você pode estar do outro lado da parede no apartamento vizinho, e eles ainda podem ver um ao outro. Você poderia estar em um andar diferente do edifício e ainda assim gerar um “contato”. Você poderia passar de bicicleta por mim ao ar livre e ainda assim ser registrado”, afirmou em declaração ao site.

E nem vamos falar nas vezes em que queremos que dispositivos Bluetooth se comuniquem, mas eles insistem em não enxergar um ao outro, mesmo que estejam lado a lado. Ou seja, embora tentadora, a ideia tem um imenso potencial para gerar uma quantidade absurda de falsos positivos, ou negativos, que poderiam prejudicar os esforços de contenção de uma epidemia. É como a história do menino que gritava “Lobo!” a todo momento. Quando um Lobo realmente apareceu, ninguém se importou, já que acharam se tratar de outro alarme falso. E ele foi devorado.

Tudo isso é para dizer que não devemos esperar que a tecnologia resolva sozinha todos os problemas associados a uma pandemia. Newton sugere que o ideal é uma combinação de ferramentas tecnológicas, como os mapas de movimentação que estão sendo elaborados pelo Google e Facebook, com o uso de pessoas e técnicas testadas e aprovadas em epidemias passadas para identificar focos e contatos.

Tom Frieden, ex-diretor do CDC (Centers for Disease Control and Prevention, orgão do governo dos EUA responsável pela prevenção e combate a epidemias) resume a situação para Newton em uma frase: “Muito pode ser feito telefonando para as pessoas. Mais ainda pode ser feito por pessoas andando por aí e batendo nas portas”.