Uma luz no fim do túnel. É assim que a terapia à base de molécula de vatiquinona está sendo vista por pacientes com ataxia de Friedreich e seus familiares. E o Brasil está participando, pela primeira vez na história, de ensaios clínicos para estudo de um medicamento voltado para tratamento e cura dessa condição.

Amália Maranhão, presidente da Associação Brasileira de Ataxias Hereditárias e Adquiridas (ABAHE) e coordenadora do grupo Ataxia de Friedreich Brasil desde 2014, falou ao Olhar Digital sobre a importância do desenvolvimento desse remédio e do fato de o Brasil fazer parte do processo.

“Isso é um evento da maior importância para a comunidade de pacientes, porque é um divisor de águas entre a falta de perspectiva de ter qualquer medicamento, qualquer tratamento, e a possibilidade, a partir de agora, de ter algum”, afirma Amália, relatando que os testes são fruto da batalha dos pacientes, que começaram a ser organizar, há sete anos, com o objetivo específico de subsidiar pesquisas. “Em doenças raras, uma grande dificuldade é encontrar sujeitos de pesquisa, pois o número de pacientes é baixo. E quando você consegue agrupar uma quantidade razoável, isso significa encurtamento de tempo dos estudos”.

Para ela, ter essa pesquisa no Brasil é ainda mais importante. “Sabemos da burocracia e das dificuldades de se conseguir aprovação de medicamentos no Brasil. É um processo demorado e custoso, e o fato de ter isso aqui significa tempo menor para a aprovação de medicamentos, ou seja, perspectiva de vida mais longa”.

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O que é a ataxia de Friedreich

O termo ataxia não é relacionado à doença em si; trata-se de um sintoma, não apenas da doença chamada “ataxia de Friedreich”, mas de várias outras patologias neurológicas. 

São várias causas diferentes, mas, todas elas, com um elemento comum: originam-se em uma parte do cérebro chamada cerebelo. “O cerebelo é como se fosse um grande computador que processa as informações”, explica o neurologista Marcondes Cavalcante França Junior, professor livre-docente do Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que atua nas áreas de doenças neuromusculares, neurofisiologia clínica e neurogenética.

“Quando o cerebelo tem um problema, que ele não consegue lidar com as informações recebidas pelo organismo, a consequência é a ataxia”, explica Marcondes.

Existem várias causas diferentes para ataxias, mas, todas elas, com um elemento comum: originam-se em uma parte do cérebro chamada cerebelo. Imagem: Captura de tela YouTube AAPPAD

Existem dois grupos em que se dividem as ataxias: o grupo das adquiridas e o das hereditárias, no qual se enquadra a doença de Friedreich.

Entende-se por ataxias adquiridas aquelas que foram contraídas em razão de um elemento anterior: traumatismo craniano, acidente vascular cerebral, intoxicações ou processos inflamatórios, por exemplo.

Já as hereditárias são aquelas de ordem genética, “em que o cerebelo vai sofrendo um processo de atrofia”, segundo Marcondes. “Ou seja, os neurônios do cerebelo que a gente chama de células de Purkinje vão perdendo a vida útil. Eles vão morrendo antes do tempo”.

De acordo com uma aula virtual do médico, disponível no canal do YouTube da Associação dos Amigos, Parentes e Portadores de Ataxias Dominantes, nesses casos, várias outras pessoas na árvore genealógica do paciente apresentam ou apresentavam os mesmos sintomas. “Mas, às vezes, pode acontecer de pacientes terem ataxias de ordem genética (hereditárias) e não haver registro de nenhum outro caso anterior na família”, salienta.

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Entre as ataxias hereditárias, existem dois subgrupos: as dominantes e as recessivas.

As ataxias dominantes tendem a se iniciar na vida adulta. Entre os 42 tipos de ataxias diferentes pertencentes a esse subgrupo, destaca-se a síndrome de Machado-Joseph, que é a mais comum desse nicho. Quando as ataxias são do tipo dominante, o pai ou a mãe do paciente também apresentam sintomas. 

É no subgrupo das ataxias hereditárias recessivas que se encaixa a de Friedreich, ao lado da síndrome de Louis-Bar e da ataxia cerebelar idiopática de início tardio (ILOCA), por exemplo. Esse grupo é caracterizado pelo fato de os sintomas se iniciarem mais precocemente. Além disso, nesses casos, os pais não apresentam a doença.

De acordo com dados levantados pela ABAHE, a ataxia de Friedreich é a ataxia genética recessiva de maior ocorrência no mundo. 

Ela começa a dar sinais antes dos 15 anos de vida do paciente e se caracteriza, principalmente, por perda de equilíbrio, fala enrolada, pés cavos e fraqueza. Além disso, os pacientes costumam desenvolver problemas cardíacos, diabetes e escoliose.

Unicamp é o Brasil na Rede Colaborativa Internacional de Centros de Pesquisa em Ataxia de Friedreich 

Marcondes lidera a equipe da Unicamp que conduz as pesquisas sobre o remédio à base de molécula de vatiquinona no Brasil. 

Segundo Amália, trata-se de um estudo multicêntrico internacional patrocinado pela PTC Therapeutics. “São 126 sujeitos de pesquisas em seis países envolvidos. Não há vagas determinadas por país, de modo que aquele que recrutar mais pacientes vai preenchendo as vagas”, explica, sem dar mais detalhes sobre a pesquisa, que ainda está em fase inicial dos ensaios clínicos.

Entre os doze pacientes brasileiros participantes dos testes, está a menina Gabriela de Souza Rocha, 13 anos, de Sumaré (SP). Filha do policial militar João Paulo De Souza Rocha e da professora Maria Luiza de Souza Rocha, Gabi, como é chamada, foi diagnosticada com Ataxia de Friedreich por um geneticista aos dez anos.

Gabriela de Souza Rocha é uma das 12 pessoas selecionadas no Brasil para participar dos testes em humanos da pesquisa internacional. Imagem: Captura de tela – vídeo de divulgação da ABAHE no Facebook

“Quando ela tinha entre seis e sete anos, começamos a notar uma diferença em seu modo de andar”, explica o pai. “Estamos muito esperançosos porque ela está participando dos ensaios clínicos para a pesquisa do remédio, e vemos aí a oportunidade de participar do desenvolvimento de medicamentos que, se aprovados, vão ajudar os pacientes do mundo inteiro que tem Ataxia de Friedreich, inclusive a minha filha”.

Amália relata que a fase de ensaios clínicos in vivo no Brasil começou há cerca de duas semanas. “É um salto tecnológico e científico muito grande. Abre as portas do conhecimento e das pesquisas sobre essa doença no Brasil, por via da Unicamp”, comemora.

Ela afirma que brasileiros com essa doença nunca participaram dessa etapa no país. “Meu filho, em 2017, e uma moça, em 2018, participaram, mas aqui nos EUA”, conta Amália, que mora em Nova York.

Veja, abaixo, a emoção da pequena Gabi ao receber os primeiros comprimidos depois do teste de admissão, realizado em 21 de junho.  

De acordo com o comunicado da ABAHE no Facebook, o material colhido foi enviado para a central de pesquisa nos EUA. Na quarta-feira (30), a Unicamp recebeu autorização para prosseguir com a administração do medicamento em Gabi.

“Houve uma nova bateria de exames, exigida para registrar todos os dados da largada no tratamento experimental com a molécula de vatiquinona”, explica o comunicado. “E essa largada não foi correr: foi engolir o primeiro comprimido do estudo, que vai durar dois anos e que carrega muitas das esperanças dos atáxicos por tratamento e cura”.

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