As maiores críticas ao movimento pós-moderno são direcionadas à prática de deliberadamente impedir que os fatos ou os detalhes de algum assunto se tornem conhecidos, algo chamado de obscurantismo. O renomado jornalista e escritor G. K. Chesterton já dizia que, nos tempos recentes, “o homem que vemos todos os dias está mentalmente preocupado demais para atentar-se com a liberdade”, e esse é o ponto central que move as engrenagens de ‘Nove Desconhecidos’. A nova minissérie da plataforma Hulu, distribuída por aqui pelo Amazon Prime Video, buscar trazer ao público a história de personagens que não querem aceitar os fatos como são e, por isso, sofrem consequências.

Não fique assustado se a pergunta “o que está acontecendo aqui?” vier à mente a cada minuto. A direção criativa de Jonathan Levine, tal qual seu trabalho no filme ‘50%’, tem claramente esse propósito: fisgar o telespectador por uma fórmula específica, densa e caótica – talvez não vista em nenhuma outra obra televisiva. Veja, a produção de oito episódios não apresenta a história de um único personagem por capítulo ou dá o protagonismo a determinada peça da trama: o enredo exibe, literalmente, nove (ou mais) desconhecidos precisando entender, mesmo não querendo, quais são seus propósitos, enquanto assumem a missão de viver pacificamente em harmonia juntos sob a tutela de Masha (Nicole Kidman). É um “trem sem freio, onde tudo acontece com todos o tempo todo.

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Grande elenco e alusão à depressão pós-moderna são destaques de ‘Nove Desconhecidos’. Imagem: Endeavor Content/Divulgação

Diferente do livro original escrito por Liane Moriarty, criticado pelas longas descrições dos personagens, o roteiro de David E. Kelley e John Henry Butterworth é mais direto em nos conduzir pelos motivos que levaram os nove indivíduos a serem aceitos no programa de reabilitação. Justamente pelo excesso de protagonistas, a minissérie é mais objetiva em mostrar que cada personagem possui um papel específico para o desenvolvimento da trama, o que torna a produção atrativa e de fácil identificação com os “protagonistas”.

E este é o maior acerto da direção feita por Levine: o bom trabalho com um elenco estelar – algo desafiador, visto que todos os atores precisam ter um tempo de tela considerável para justificar a presença na história. Felizmente, cada um deles tem o momento de exibir o porquê de serem tão importantes ao enredo, seja compartilhando dores, traumas e avanços. Alguns, claro, possuem mais importância do que outros para a narrativa e aproveitam dos “minutos a mais” em tela para roubar um pouco a cena, por exemplo Nicole Kidman, Bobby Cannavale e Melissa McCarthy.

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Nicole Kidman brilha, mais uma vez, como protagonista e produtora da minissérie. Imagem: Endeavor Content/Divulgação

Repetindo a parceria com Moriaty depois da adaptação de ‘Big Little Lies’ para o HBO, é visível notar como Kidman é uma profissional que se reinventa cada dia mais em Hollywood. Estrelando projetos notáveis tanto no cinema quanto na televisão, a atriz e produtora de ‘Nove Desconhecidos’ se supera novamente na pele da excêntrica Masha. A personagem, com um sotaque europeu bem forte, chega a ser extremamente insuportável em certos momentos por conta de todo o mistério que ronda a figura por trás da dona do retiro espiritual, quase um “10º desconhecido”. Ao mesmo tempo em que parece ter o controle total da situação e do progresso dos pacientes, ela também flerta com a própria loucura e traz ao público a imagem de que até a persona mais poderosa e estável pode, bem, cair…

No entanto, Kidman não chega a impressionar tanto (claro, porque já sabemos do que a atriz é capaz) quanto Cannavale e McCarthy – que repetem a parceria pela terceira vez no ano e se mostram muito conectados ao trabalharem juntos. O ator, que cresce cada dia mais no cenário, brilha e é desenvolvido a cada episódio como Tony Hogburn, um ex-jogador de futebol americano que carrega um passado atormentado e uma série de vícios. O retrato que ele traz da depressão é o mais comum, porém o mais acessível ao público no quesito “compreensão” – não só pelo carisma e excelente trabalho do artista, mas por entregar ótimos momentos em arcos fáceis de se relacionar.

McCarthy, por sua vez, demora um pouco para chamar a atenção do telespectador, visto que parece levemente com diversos personagens já feitos pela atriz. Contudo, a parceria alinhadíssima com Cannavale e uma trama melodramática que equilibra o clichê com plot twists interessantes faz com que a atriz, intérprete de uma escritora angustiada com o iminente fim de seu sucesso, se conecte de forma prática com quem assiste e, por consequência, ascenda suavemente como “principal protagonista”.

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Bobby Cannavale traz uma das melhores – se não, a melhor – atuação da carreira em ‘Nove Desconhecidos’. Imagem: Endeavor Content/Divulgação

Dentre outra gratas surpresas ainda estão os três membros da família Marconi, interpretados por Michael Shannon, Asher Keddie e Grace Van Patten. O veterano está estupendo em cenas muito engraçadas e, ao mesmo tempo, tristes, pois interpreta um pai que quer se mostrar feliz a todo o custo, mesmo após a perda do filho. Já atriz de 47 anos é a responsável por trazer os momentos mais dramáticos e fortes da minissérie, pois é uma mãe que não conseguiu superar o ocorrido e tenta, ao máximo, reprimir o sentimento – misto de culpa e raiva. Já a jovem artista é o maior simbolismo da saudade em meio ao luto, visto que se inibe ao máximo em “seguir em frente” por conta da perda do irmão gêmeo. A dinâmica em mostrar que cada familiar tem uma reação diferente à perda é muito bem produzida.

Samara Weaving, que interpreta a viciada em redes sociais Jessica Chandler, e Regina Hall como a estressada Carmel Schneider também são boas adições que têm muito para contar e mostrar, visto que ambas possuem diversas fragilidades e se escondem em seus próprios medos. O mesmo não pode ser dito de Luke Evans como o jornalista Lars Lee, infelizmente, que brilha menos do que os colegas de trabalho. Ácido, arrogante e bocudo, o personagem possui uma história de fundo interessante demais, porém pouco abordada. Claro, ainda há dois episódios (entenda melhor no fim do texto), logo, o arco dele pode surpreender afinal.

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Melissa McCarthur e Asher Keddie em cena de ‘Nove Desconhecidos’. Imagem: Endeavor Content/Divulgação

O retrato da depressão pós-moderna

Além de ótimas atuações de um grande elenco e uma simples, porém muito bem feita produção – envolta por um maravilhoso trabalho de fotografia, que valoriza a vivacidade e as cores do pequeno paraíso planejado, e “brincando” com conflite de exposição contínua e obscurantismo – a obra dirigida por Levine expõe as várias formas de depressão pós-moderna na sociedade atual, algo que é mais do que a simples e errônea premissa de “estar triste demais”.

Os “nove desconhecidos”, Masha e até os funcionários são construídos de forma particular para evidenciarem nos momentos em tela como o “mal do século” pode afligir alguém de forma diferente. Há personagens que estão em tristeza e angústia profunda, claro, porém há outros que acham que estão felizes com suas vidas cotidianas e, ao serem confrontados, percebem que há algo errado. Há ainda alguns que entendem como a depressão os afeta no dia a dia, todavia a reprimem a ponto os deixarem à beira da loucura. A exemplificação dos vários tipos na minissérie é bem feita e, além de necessária, faz com que o público se identifique com, ao menos, um dos indivíduos mostrados.

Com ritmo lento e, algumas vezes, chato, ‘Nove Desconhecidos’ quer mostrar como funciona a depressão pós-moderna. Imagem: Endeavor Content/Divulgação

Por tal objetivo mirado, além de um mistério que pode soar desnecessário em diversas oportunidades, o roteiro de ‘Nove Desconhecidos’ é lento em dar explicações – e quando dá, causa ainda mais dúvidas a quem assiste. Não obstante, a produção acerta em trazer uma boa reflexão em um tema que raramente é debatido com amplitude e perspicácia, criticando a formulação de pré-julgamentos, comodismos e o verdadeiro status de cada um de nós, algo que está alinhado ao discurso da série acerca das máscaras sociais que usamos no dia a dia. 

Dê uma chance e fique de olho em ‘Nove Desconhecidos’

A passos lentos e com elementos que, alguma vezes, destoam da ideia da produção, ‘Nove Desconhecidos’ consegue impressionar pelo grande elenco, ótimas atuações, direção criativa e por arriscar retratar a lógica da depressão pós-moderna de forma instigante e envolvente. A minissérie funciona, justamente, pelo paranoia gigante que acerca o retiro espiritual e os personagens, mas há necessidade de seguir direto ao ponto nos últimos episódios.

Ou seja: caso o final for construído de forma consistente tal qual o restante da série, há claras chance da produção da Hulu aparecer nas principais premiações em 2022. Claro, há de se ter parcimônia na expectativa, visto que os dois últimos capítulos podem fechar a trama como “chave de ouro” ou colocar a perder todo o desenrolar da trama.

Há também o fato do modelo semanal de divulgação: ‘Nove Desconhecidos’ tem a missão de angariar espectadores ao longo das semanas, abrindo espaço para teorias, rumores e enfim, de tudo o que pode vir a acontecer com os personagens. O ápice, aviso de antemão, será no sétimo episódio, onde todas as situações irão encontrar o seu desfecho. Daqui em diante, é encerrar com aclamação ou desprezo – não há meio termo.

Ótimas atuações e direção criativa de Jonathan Levine pode levar ‘Nove Desconhecidos’ a aparecer nas principais premiações no ano que vem. Imagem: Endeavor Content/Divulgação

Ficou intrigado e não vê a hora de assistir ‘Nove Desconhecidos’? Saiba que os três primeiros episódios chegam ao Prime Video nesta próxima sexta-feira (20) – e ganhará novos semanalmente. A série é estrelada por grande elenco, que conta com Nicole Kidman, Tiffany Boone, Bobby Cannavale, Luke Evans, Melvin Gregg, Melissa McCarthy, Michael Shannon, Asher Keddie, Samara Weaving e Grace Van Patten.

Saiba mais detalhes da produção dirigida por Jonathan Levine, com roteiro de John-Henry Butterworth, David E. Kelley, Liane Moriarty e Samantha Strauss com o trailer e sinopse abaixo:

“Nove Desconhecidos acontece em um resort boutique de saúde e bem-estar que promete cura e transformação de nove moradores estressados das cidades, que tentam entrar em um caminho para uma nova forma de vida. Cuidando deles durante um programa de 10 dias está a diretora do resort, Masha, uma mulher que tem a missão de revigorar suas mentes e corpos. No entanto, esses nove estranhos ‘perfeitos’ não têm ideia do que irá atingi-los”.

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