Antes de mais nada, saiba que ‘A Lenda de Candyman‘ é um protesto político e manifesto contra o racismo, a gentrificação e a violência institucionalizada. É um filme com mensagens fortes, que trabalha o tempo todo em um nó artístico e subjetivo para, no fim, desenlaçar uma mensagem forte e que traz gosto amargo ao espectador. O roteiro de Jordan Peele (‘Corra’ e ‘Nós’), Win Rosenfeld (‘Infiltrado na Klan’) e Nia DaCosta (‘The Marvels’) – que também dirige o longa – faz uso de uma das lendas urbanas mais icônicas da história do terror moderno para “lacrar” sem receio e exibir a verdade nua e crua do sofrimento negro estadunidense, e por consequência mundial.

De fato, a produção é uma “sequência espiritual”, e não direta, do clássico de 1992, ‘O Mistério de Candyman’. Claro, a simbologia, misticismo, as críticas ao preconceito racial e ao processo de modificação do espaço urbano continuam e de forma ainda mais evidente. Mas ao invés de flashbacks e easter eggs costumeiros, DaCosta utiliza a técnica do teatro de sombras para referenciar o primeiro filme e a jornada sanguinária de Helen Lyle (Virginia Madsen) quando cruza com o “assassino do espelho”, após invocá-lo.

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'A Lenda de Candyman', dirigido por Nia DaCosta. Imagem: Universal Pictures and MGM Pictures/Divulgação
‘A Lenda de Candyman’, dirigido por Nia DaCosta, referencia o filme original de 1992. Imagem: Universal Pictures and MGM Pictures/Divulgação

Só que ‘O Mistério’ contava com uma trama atrelada ao terror e intrincada à comunidade de Cabrini-Green, mostrando as dificuldades dos moradores e as lutas diárias da comunidade observadas do ponto de vista de uma acadêmica branca e loira. Em ‘A Lenda de Candyman’, DaCosta é explícita em “corrigir o erro” e mudar a concepção ao trazer experiências de personagens negros com o mito do “assassino do espelho” – que sempre foi negro.

Preciso assistir ao filme de 1992 para ver o de 2021? Não necessariamente. Os dois longas se conectam, e muito bem, para proporcionar uma melhor experiência em questão de enredo, mas não no fator geral como produção, visto que o longa é totalmente feito para ser relevante aos dias atuais. A mensagem, apesar da subjetividade, é dada de forma clara no fim do filme graças a DaCosta, que consegue unir arte, suspense e moral ética o suficiente para “tocar na ferida” e falar com propriedade sobre questões raciais e de gentrificação.

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Yahya Abdul-Mateen II como Anthony McCoy em 'A Lenda de Candyman', dirigido por Nia DaCosta. Imagem: Universal Pictures and MGM Pictures/Divulgação
Yahya Abdul-Mateen II como Anthony McCoy em ‘A Lenda de Candyman’. Imagem: Universal Pictures and MGM Pictures/Divulgação

No entanto, apesar de entregar o incrível filme que se propôs a fazer desde o minuto 1 – fora o destaque que tem recebido desde o seu primeiro longa: ‘Passando dos Limites’ (2018) -, o trabalho da diretora soa monótono em alguns momentos. ‘A Lenda de Candyman’ equilibra cenas artísticas um pouco arrastadas (e que contemplam mais o visual do que a história) com momentos explicativos tão velozes que o espectador menos atento não conseguirá entender 100%. Para um longa com 96 minutos, a cadência aqui mostrada faz com que o tempo de duração pareça maior.

Não que isso seja um ponto negativo, todavia é notável ver que DaCosta se apegou muito ao jeito Peele de fazer cinema, visto que o filme “bebe muito da fonte” de ‘Nós’ e ‘Corra’, com acréscimos de toques mais cults. Falando no produtor e corroteirista, é possível observar como ele cresce cada dia mais na indústria e mescla autenticidade com sua própria “assinatura”. O argumento dele, construído com Rosenfeld e a diretora, pega todo o contexto étnico-racial que funcionou em suas outras produções, ao mesmo tempo que surpreende ao deixar bem claro que o elenco majoritariamente negro não tem como antagonista a entidade maligna ou “um vilão branco”, e sim a realidade em si.

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Michael Hargrove como Sherman Fields em 'A Lenda de Candyman', dirigido por Nia DaCosta. Imagem: Universal Pictures and MGM Pictures/Divulgação
Michael Hargrove como Sherman Fields em ‘A Lenda de Candyman’. Imagem: Universal Pictures and MGM Pictures/Divulgação

Já em relação à lenda urbana propriamente dita, o roteiro trabalha “certinho” em reviver o mito de forma respeitosa, mesclando referências às várias versões da história já conhecida (conto, filmes e etc.), porém com certas diferenças para deixar a trama mais moderna – fugindo do tom aterrorizante típico dos filmes de terror para abraçar a subjetividade crítica e com moral impactante. Caso não goste ou estranhe a linha cult proposta, ao menos saiba que a figura aterrorizante de Daniel Robitaille vive e ainda impõe medo em toda a cena que aparece, muito também por conta do excelente retorno de Tony Todd. Não há ninguém que poderia ser Candyman além dele.

E vale ressaltar que tal qual o primeiro longa, ‘A Lenda de Candyman’ continua com cenas sangrentas e momentos gore nas mortes pelo gancho do assassino, seja em uma exposição de artes ou em um banheiro de um colégio. Contudo, a produção, por todo o contexto político e moral, acaba deixando o fator em segundo plano e soando mais do que apenas um slasher, talvez um suspense dramático – algo que não deve agradar os entusiastas de filmes de terror.

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Yahya Abdul-Mateen II como Anthony McCoy em 'A Lenda de Candyman', dirigido por Nia DaCosta. Imagem: Universal Pictures and MGM Pictures/Divulgação
Yahya Abdul-Mateen II como Anthony McCoy enfrenta o espelho em ‘A Lenda de Candyman’. Imagem: Universal Pictures and MGM Pictures/Divulgação

O crítico aqui é suspeito para falar da dupla protagonista de atores, mas vamos lá: Yahya Abdul-Mateen II entrega belíssima e delicada atuação como Anthony McCoy, um artista plástico que vive uma fase em sua carreira de certo bloqueio criativo. O personagem segue uma jornada similar à Helen, porém com um propósito diferente que suavemente destoa um pouco da premissa proposta por DaCosta. Felizmente, nada afeta o desempenho do ator, que no filme adere a uma pegada mais desesperadora do que outras produções em sua carreira. É, com certeza, um dos nomes em Hollywood que mais cresce atualmente na indústria.

Teyonah Parris não tem tempo suficiente de tela para mostrar mais da força que tem atuando, diferente de ‘E Se a Rua Beale Falasse’ e ‘WandaVision’, mas protagoniza cenas necessárias que mostram a verdadeira intenção de ‘A Lenda de Candyman’. Uma pena, no entanto, que o argumento do trio de roteiristas tenha dado à galerista que tenta competir no mercado artístico de Chicago ao lado do chefe, um homem hétero e branco, uma subtrama totalmente desnecessária em relação ao passado dela – que só cumpre o objetivo de mostrar o porquê de estar em um relacionamento com o protagonista.

Teyonah Parris como Brianna Cartwright em 'A Lenda de Candyman', dirigido por Nia DaCosta. Imagem: Universal Pictures and MGM Pictures/Divulgação
Teyonah Parris como Brianna Cartwright em ‘A Lenda de Candyman’. Imagem: Universal Pictures and MGM Pictures/Divulgação

Enfim, o elenco coadjuvante é básico e cumpre apenas o papel definido por roteiro, seja nas mortes atreladas a Candyman ou para fins de interação com Mateen II e Parris. Em níveis de produção, a MGM e a Universal Pictures acertam com a fotografia carregada e que dita o tom de suspense no decorrer do filme. A trilha sonora é praticamente perfeita, assim como toda a sonoplastia envolvida, imergindo o público com efeitos de suspense pontuais e quebrando o clima quando necessário – sem contar a alusão exacerbada a ‘Candyman’, canção clássica de Sammy Davis Jr.

‘Candyman’ é renovado como lenda urbana para trazer mensagem sobre racismo e gentrificação

DaCosta, Peele e Rosenfeld conseguem impor em ‘A Lenda de Candyman’ diversas críticas atuais e necessárias sobre racismo, gentrificação e preconceito como um todo que forçam o público a repensar várias situações sobre o que acontece no mundo. O filme cumpre a função de continuar a trama de lenda urbana original, mas o verdadeiro vilão é o sistema e a sociedade como um todo que definem minorias políticas não-brancas e institucionalizam a violência como preceito de coerção.

Com referências também ao movimento black lives matter e ao brutal assassinato de George Floyd, a produção é uma crítica aberta ao que a maioria das entidades de segurança fazem com a população negra: censuram direitos civis e, por consequência, a existência como seres humanos; O resultado? A infeliz ordem de “atirar para matar” e apenas depois identificar a pessoa e perguntar “o que aconteceu?”.

Teyonah Parris como Brianna Cartwright em 'A Lenda de Candyman', dirigido por Nia DaCosta. Imagem: Universal Pictures and MGM Pictures/Divulgação
Candyman é uma metáfora em novo filme e serve mais como mensagem poderosa nos tempos modernos do que ao terror. Imagem: Universal Pictures and MGM Pictures/Divulgação

O verdadeiro terror da produção é a violência racial criada por um sistema regulado historicamente por pessoas brancas. Vale destacar ainda que o longa traz uma inteligente analogia sobre colmeia e a polícia, que nos faz refletir sobre métodos de ataque e defesa. Porém, ao contrário das abelhas, as capacidades racionais do ser humano podem (e devem) mudar tal comportamento.

É por isso que precisamos de Peele, DaCosta e mais nomes negros e sem medo na indústria cinematográfica, para denunciar o genocídio de minorias presente no mundo e transformar a sétima arte em manifesto como forma de reflexão e, assim esperamos, revolução. De qualquer forma, ‘A Lenda de Candyman’ é um filme que vale a pena assistir, porém como dito logo no começo do texto, é uma crítica política. Caso procure algo novo de terror/suspense, ‘Espiral’ se saiu melhor no quesito.

Ficou interessado em assistir ‘A Lenda de Candyman‘? A produção dirigida por Nia DaCosta, com Jordan Peele (‘Corra!’; ‘Nós’) que produz o filme e escreve o roteiro ao lado de Win Rosenfeld (‘Infiltrado na Klan’), estreia nesta quinta-feira (26) em todas as salas de cinema do Brasil. O elenco conta com Yahya Abdul-Mateen II (‘Aquaman’), Teyonah Parris (‘Se A Rua Beale Falasse’), Nathan Stewart-Jarrett (‘O Menino Que Queria Ser Rei’) e muito mais.

Confira mais detalhes do longa-metragem com sinopse e trailer oficiais:

Desde que os moradores se lembram, os projetos habitacionais do bairro Cabrini Green, em Chicago, eram aterrorizados por uma história de fantasma famosa sobre um assassino sobrenatural com um gancho na mão, facilmente invocado por aqueles que ousam repetir seu nome cinco vezes no espelho. Nos dias atuais, uma década depois que as últimas torres de Cabrini foram derrubadas, o artista visual Anthony McCoy e sua namorada, diretora da galeria, Brianna Cartwright, se mudam para um condomínio de luxo em Cabrini, agora gentrificado e habitado por millennials.

Com a carreira de pintor de Anthony à beira da estagnação, um encontro casual com um residente de Cabrini das antigas expõe Anthony à trágica natureza horrível da verdadeira história por trás de Candyman. Ansioso por manter seu status na cena artística de Chicago, Anthony começa a explorar esses detalhes macabros em seu estúdio como uma nova fonte de inspiração para suas pinturas, abrindo sem saber uma porta para um passado complexo que desafia sua própria sanidade e desencadeia uma onda de violência terrível que o coloca em rota de colisão com o destino.

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