Enquanto a Nasa e outras organizações trabalham para estabelecer postos avançados humanos na superfície lunar em um futuro próximo, surgem algumas questões legais relacionadas ao aproveitamento dos recursos da Lua – especialmente o gelo de água, que é considerado abundante no solo permanentemente sombreado das crateras polares. Afinal de contas, quem tem direito a explorar aquele lugar? Existe algum “proprietário” das “terras lunares”?

A Lua tem dono? Empresário britânico-americano se diz proprietário de parte do nosso satélite natural. Imagem: Paitoon Pornsuksomboon – Shutterstock

Pode parecer uma pergunta estranha, e até remeter aos famosos líderes religiosos charlatães que prometem “vender um terreno no céu”. 

No entanto, há quem, de fato, reivindique a posse da Lua, e até afirme que tem um “certificado de propriedade”. Trata-se do multimilionário britânico-americano Richard Garriott, fundador da desenvolvedora de jogos Origin Systems, responsável pela série de RPGs “Ultima” e mais conhecido pelo nome de seu personagem no jogo, “Lord British”.  

Garriott é presidente do Explorers Club, uma organização internacional, com sede em Nova York, dedicada ao avanço da exploração de campo e investigação científica. Em uma conferência virtual realizada pela instituição no mês passado, ele declarou: “Eu sou o dono da Lua”.

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Garriott foi um dos primeiros turistas espaciais

Antes de entender direito essa história, vale conhecer um pouco mais sobre o empresário – e descobrir que essa não é a primeira “excentricidade” de seu currículo.

Além de fazer parte dos primórdios da indústria de videogames, Garriott é um viajante aventureiro. Já rodou praticamente todo o globo, das selvas da Amazônia ao Polo Sul, chegando inclusive ao ponto mais profundo dos oceanos da Terra: 10.928 metros abaixo da superfície do mar, na Fossa das Marianas, no Oceano Pacífico.

Mas isso aconteceu depois de outra aventura ainda mais impressionante: inspirado pelo pai, o astronauta norte-americano Owen Garriott (que, em 1973, passou 60 dias em órbita a bordo da primeira estação espacial dos EUA, a Skylab), ele decidiu que também queria conhecer o espaço.

Richard Garriott foi o sexto turista espacial da história. Em 2008, ele passou 11 dias na Estação Espacial Internacional (ISS). Imagem: Gagarin Cosmonaut Training Center / NASA

Então, em 2008, ele desembolsou em torno de US$ 30 milhões para voar até a Estação Espacial Internacional (ISS), onde permaneceu por 11 dias, sendo um dos primeiros a praticar o que chamamos de “turismo espacial“. Ele voou a bordo da nave Soyuz TMA-13, tendo como companheiros de viagem o cosmonauta russo Yuri Lonchakov e o astronauta norte-americano Michael Fincke.

Enquanto esteve na ISS, Garriott fez uma “travessura” que só confessou muitos anos depois. Escondeu, em algum lugar atrás dos painéis que revestem o interior da estação, uma porção das cinzas do corpo do ator James Doohan, o “Scotty” da série Star Trek.

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“Não reivindicarei a Lua inteira”, diz Garriot

Só por aí já dá para entender que não estamos falando de um maluco qualquer (sim, talvez um maluco – mas, “no bom sentido”). 

Durante a videoconferência, ele esclareceu: “Não reivindicarei a lua inteira”. Segundo Garriott, ele tem direito a, pelo menos, uma pequena parte do satélite natural da Terra.

Essa declaração deriva do fato de ele ter investido US$ 68,5 mil, em 1993, para comprar o módulo de pouso Luna 21, da União Soviética, e seu rover Lunokhod 2, que exploraram a superfície lunar 20 anos antes.

Renderização do rover lunar Lunokhod 2, da União Soviética, comprado por Richard Garriott. Imagem: NASA / NSSDCA

Segundo o site Space, o negócio foi fechado durante um leilão espacial da Sotheby’s em Nova York, que garantiu a Garriott uma fotografia de um modelo do Lunokhod 2 e um conjunto de documentos em russo e em inglês, incluindo uma escritura de transferência de título, bem como um certificado de propriedade. “Foi a primeira vez que um objeto que não está na Terra foi vendido”, disse o empresário.

Assim que saiu do Luna 21, na cratera Le Monnier, que fica na margem oriental do Mar da Serenidade, o rover operou por cerca de quatro meses, sendo controlado remotamente por uma equipe na Terra, enquanto retransmitia imagens panorâmicas da superfície lunar.

Em 9 de maio de 1973, Lunokhod 2 teve seu painel solar e radiador-refrigerador cobertos por pó, depois que ele entrou em contato com a parede de uma cratera e foi atingido por regolito lunar e cascalho. Esse incidente aparentemente deixou o rover inoperante; ele enviou informações de telemetria para a Terra, pela última vez, em 10 de maio do mesmo ano. 

Em sua discussão para o Explorers Club, Garriott alertou, no entanto, que Lunokhod 2, também conhecido como “Moonwalker”, ainda está em uso, de certa forma. “Mesmo que as baterias nele tenham falhado, há um conjunto de espelhos reflexivos que ainda são usados ​​até hoje por uma variedade de telescópios ao redor do mundo para detectar a distância Terra-Lua e alguma oscilação da Lua”, disse ele. “Portanto, isso está longe de ser lixo espacial. Ainda está em uso ativo”.

Além da propriedade do Lunokhod 2, Garriott afirma que pode possuir o regolito lunar sobre o qual o rover está assentado, ou pelo menos a poeira embaixo do rover e do módulo de pouso Luna 21.

E tem mais. Garriott ressaltou o fato de que seu rover rodou cerca de 40 km sobre o árido território lunar, então, ele diz que também é dono desse trajeto. 

Travessia feita pelo rover Lunokhod 2, conforme plotado usando imagens feitas pelo Lunar Reconnaissance Orbiter da Nasa. Imagem: NASA / GSFC / Arizona State University

Além disso, ele fez outra afirmação sobre as câmeras do Lunokhod 2. Segundo Garriott, o conjunto Luna 21 / Lunokhod 2 pesquisou fotograficamente todo o solo que é visível da trilha do rover, de uma altitude de 1,8 m acima da Lua. “Portanto, pode ser razoável para mim reivindicar não apenas os 40 km do trajeto, mas tudo o que esse veículo examinou”, disse Garriott.

Rússia e EUA tem um acordo com relação aos locais de pouso de suas missões lunares, informando que eles estão fora dos limites para visitas, por motivos históricos e patrimoniais. “Isso significa que a zona de exploração de Lunokhod 2, de propriedade privada, pode ser um tapete de boas-vindas”, disse Garriott.

“Se um desses rovers privados chegasse à Lua, pousando perto de nosso local, então teríamos uma troca econômica. Eu diria ‘vou pagar generosamente por quaisquer dados ou fotografias que fizerem de qualquer um dos meus domínios: meu rover, meu lander, minha trilha, minha propriedade. Mas, eu também espero que você me pague direitos de acesso por estar em minha propriedade’. Portanto, teremos trocado interesses econômicos”, disse ele.

“Para as pessoas que pensam que tudo isso é hipotético, embora eu faça minha afirmação de forma levemente irônica, eu realmente acho que isso levanta questões sérias”, disse Garriott. “Esses problemas estão acontecendo mais rápido do que as pessoas podem imaginar.”

Herança da humanidade

E Garriott está certo quanto a isso. Embora tenha sido irônico em sua declaração, o assunto realmente é sério e tem sido tema recorrente de vários encontros, seminários, webinários e até acordos internacionais. 

De fato, a possibilidade da colonização da Lua demonstra vários desafios para a legislação espacial. Conforme ressalta um artigo no site da Agência Espacial Brasileira, “o processo seria muito caro, um projeto de infraestrutura enorme que exigiria muitos recursos, e seria necessário fornecer garantias para os investidores que garantissem seu retorno e, simultaneamente, um equilíbrio de poder entre os interessados”.

Em meados da década de 1960, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (COPUOS), estabeleceu regras gerais que viriam a servir de base para a regulação do setor. Essa formulação foi aprovada em Resolução da Assembleia Geral da ONU, sendo conhecida como Tratado do Espaço Sideral (em inglês, “Outer Space Treaty – OST”), assinado em 27 de janeiro de 1967 e que entrou em vigor em 10 de outubro daquele ano.

Entre suas diretrizes, encontram-se os motivos pacíficos e a proibição de uso militar da Lua. Mas, o que se destaca é o artigo IX, que diz que a exploração deve ser guiada pelos princípios de cooperação e assistência mútua, e que as nações devem conduzir suas atividades baseadas no interesse comum de todos.

Alguns anos depois, surgiu o Acordo da Lua (em inglês, Moon Agreement – MA), que foi aprovado em 1979, reiterando, aprimorando e adicionando algumas regras estabelecidas pelo OST. 

Pelo documento, a Lua é considerada uma “herança para a humanidade”, e deve ser estabelecido um regime internacional para governar a exploração de seus recursos naturais. 

Para o professor de direito e políticas espaciais da faculdade de Northumbria, Cristopher Newman, a assinatura dos Acordos Artemis também tem especial importância na legislação espacial. Ele cita a declaração do administrador da Nasa, Bill Nelson, sobre esses documentos: “Princípios universais e simples que permitirão a nova geração de parcerias para exploração da Lua”.

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