No final de 2021, um cometa foi um dos assuntos mais comentados nas redes. E não estamos falando do Cometa Leonard que até deu seu showzinho de Natal. Mas quem fez sucesso mesmo, foi o Cometa Dibiasky, do filme ‘Não Olhe Para Cima’.

No filme, o cometa descoberto pela astrofísica Kate Dibiasky está vindo em direção à Terra e tem potencial para destruir o planeta. A história se desenvolve com os cientistas tentando desesperadamente convencer a população e as autoridades do perigo iminente. O filme é uma sátira, mas será que o cenário proposto por ele pode acontecer um dia?

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De maneira geral, o filme é bem fiel à Ciência. Algo que já era esperado, já que contou com a consultoria da Dra. Amy Mainzer, astrônoma chefe do telescópio espacial NEOWISE. Apenas alguns detalhes fogem a essa regra, mas parecem como licenças técnicas para viabilizar o enredo.

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Dra. Amy Mainzer, consultora de Astronomia do filme 'Não Olhe Para Cima'
Dra. Amy Mainzer, consultora de Astronomia do filme ‘Não Olhe Para Cima’. Fonte: planetarysociety.org

Primeiramente, lamento informar que o impacto de um grande cometa com a Terra é perfeitamente possível, embora seja extremamente improvável. O Cometa Dibiasky teria algo entre 5 e 10 quilômetros e estima-se que impactos dessa magnitude só ocorram a cada 100 milhões de anos.

Ele não teria potencial para destruir o planeta, mas o estrago estimado pelos cientistas no filme, como tsunamis mortais e terremotos de 10 graus na escala Richter, parecem bem razoáveis. Seria um evento bem semelhante àquele que dizimou os dinossauros há 65 milhões de anos.

Mas a rapidez e precisão com que esses cálculos foram feitos no filme não reflete nem um pouco a realidade. Até daria para calcular a órbita do cometa com apenas uma noite de observação, mas a margem de erro seria tão grande que a possibilidade de impacto com a Terra tenderia a zero.

Dr. Randall Mindy, personagem de Leonardo DiCaprio, calculando a órbita do Cometa Dibiasky
Dr. Randall Mindy, personagem de Leonardo DiCaprio, calculando a órbita do Cometa Dibiasky. Reprodução: netflix.com

Imagino que o “fator surpresa” seja algo importante para a trama. Mas na vida real, seriam necessárias várias noites de observações para aumentar a precisão dos cálculos ao ponto de poder afirmar a data, hora e local do impacto. Além disso, a primeira entidade a ser informada do cometa não seria nem a NASA nem a Casa Branca. Seria o Minor Planet Center, que confirmaria a descoberta em uma circular aberta, o que tornaria a notícia pública para todo o mundo.

Segundo o astrônomo Cristóvão Jaques, do Observatório SONEAR, geralmente o MPC demora de 1 semana a 20 dias para liberar uma circular de cometas. Calcular com precisão a órbita de um cometa com período de milhares de anos em apenas poucos dias de observação é praticamente impossível.

“Para se atingir uma margem de erro menor que o diâmetro da Terra, o que indicaria um impacto com mais de 99.7% de probabilidade, demoraria na maioria dos casos mais de 1 mês. E isto sem considerar os parâmetros não gravitacionais que podem mudar a trajetória do cometa. No fim, a certeza só viria depois de uns 3 meses de observações e cálculos”, completa Jacques.

O tamanho de um cometa também é algo complicado de se medir. Isso porque a coma não nos permite observar seu núcleo diretamente. Só dá para fazer isso através de uma ocultação estelar, por sondas espaciais, ou por radar, quando o cometa estiver suficientemente próximo da Terra. Antes disso, o que se tem são apenas estimativas baseadas no seu brilho. Apesar de não explicar isso tecnicamente, o filme deixa isso subentendido, já que nem mesmo os cientistas parecem saber o tamanho exato do Cometa Dibiasky.

Imagens de radar do Cometa 103/P Hartley 2
Imagens de radar do Cometa 103/P Hartley 2. Créditos: NAIC-Arecibo/Harmon-Nolan

Um outro ponto um tanto controverso no filme é a presença de metais valiosos no Cometa. Cometas são compostos essencialmente de gelo de água, gases congelados e poeira. Existem cometas com núcleos rochosos, e em alguns deles, já foi detectada a presença de metais, mas em quantidades ínfimas. Embora seja algo possível, não há notícias de algum cometa que tenha grandes quantidades de metais em seu núcleo. Mas talvez o filme não seria o mesmo sem essa evidente “flexibilização” científica.

Agora algo que vocês provavelmente não irão ver na vida real, é a cena com vários lançamentos simultâneos de foguetes para interceptar o cometa. Apesar de não haver impedimentos físicos e tecnológicos para isso, a cena deve dar calafrios em qualquer engenheiro espacial, já que é uma operação extremamente arriscada.

Lançamentos simultâneos de foguetes do filme 'Não Olhe Para Cima'
Lançamentos simultâneos de foguetes do filme ‘Não Olhe Para Cima’. Reprodução: netflix.com

Durante cada lançamento, uma equipe enorme de técnicos e engenheiros acompanham cada detalhe da operação para garantir que vai dar tudo certo. Mas com vários lançamentos simultâneos, a equipe se dividiria e os riscos se multiplicariam.

Cada foguete teria que reagir às perturbações geradas pelas ondas de choque dos vários motores acionados ao mesmo tempo, e a falha em apenas um deles poderia gerar uma reação em cadeia afetando outros foguetes ou até mesmo, toda a missão.

'Não Olhe Para Cima'
‘Não Olhe Para Cima’. Créditos: Divulgação/Netflix

De fato, a preocupação com segurança não parece ser uma das virtudes das autoridades no filme. Mas vamos ficar por aqui para evitar spoilers. E se você ainda não viu “Não Olhe Para Cima”, eu recomendo que assista sabendo que o cenário exposto no filme é perfeitamente possível e, embora algumas situações sejam exageradas e os personagens caricaturescos, tente responder: qual seria a sua reação em uma situação como aquela?

Segundo Adam McKay, diretor do filme, “Não Olhe Para Cima” pretende chamar a atenção para um outro problema da humanidade: a crise climática. Segundo ele, estamos vivendo exatamente esse mesmo momento em que os cientistas tentam desesperadamente convencer a população e as autoridades do perigo iminente. E nós, como estamos reagindo?

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