Desde muito tempo o conserto de equipamentos em geral é conhecido como trabalho de homens. Quando se fala em manutenção de materiais eletrônicos não é diferente. Nas lojas de assistência técnica, por exemplo, é comum observar nos balcões de atendimento a figura masculina para testar, consertar, desmontar ou remontar notebooks e celulares ou ainda substituir suas peças.

Esse cenário no Brasil segue na contramão da Índia e China, países onde 80% da montagem de eletrônicos no chão de fábricas é realizada por mulheres. Delicadeza, minuciosidade no manejo com as mãos e paciência na manipulação das peças, em sua maioria muito pequenas, fazem das mulheres as profissionais preferidas para essa linha de produção. Esses diferenciais são pertinentes porque o trabalho de manutenção, reparos e montagens dos componentes eletrônicos exigem toques mais sutis, já que são muito sensíveis. Além disso, há peças que remetem ao universo feminino como a placa mãe, pente de memória RAM, pasta térmica, cabeça de memória e dissipador de calor.

Para ilustrar o papel das mulheres na tecnologia podemos citar a área de Hardware, que está em pleno crescimento. Com isso, aumenta também a demanda por mão-de-obra, uma necessidade em que as mulheres têm potencial para atuar e fazer a diferença. Por exemplo, as medalhas dos atletas da Olimpíada do Japão foram elaboradas com metais extraídos do lixo eletrônico e confeccionadas pela mão-de-obra feminina.

É nesta esteira que as iniciativas do projeto Tech Girls têm contribuído para a visibilidade e crescimento do trabalho das mulheres na área da tecnologia. Em cinco anos, o Projeto já capacitou mais de 550 mulheres em estado de vulnerabilidade social, gerando renda para suas famílias e comunidades. A expectativa é de dobrar esse número no curto prazo. Para atingir esse objetivo, a contribuição das empresas privadas ou pessoas físicas é fundamental.

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Elas podem colaborar doando computadores, celulares ou quaisquer outros eletrônicos que estão obsoletos ou fora de uso, o que chamamos de lixo eletrônico. É nesse momento, as alunas do Tech Girls entram em cena reparando os equipamentos, devolvendo vida a eles – tanto na parte física (hardware) como na lógica (software) – ou ainda, transformando componentes em bijouxtechs, joias artesanais elaboradas com peças de computadores, contribuindo desta forma para a economia circular.

A falta de computadores no Brasil

Já é fato que o futuro pertence à tecnologia, os números de venda de computadores e notebooks em 2021 afirmam essa tendência. De acordo com a multinacional Canalys, houve um aumento de 15% nas vendas desses equipamentos no ano passado, com mais de 314 milhões de unidades enviadas.

No entanto, falta democratizar o acesso a essas tecnologias. Um estudo do Instituto Locomotivas e da empresa de consultoria PWC, cerca de 33,9 milhões de pessoas não têm acesso à internet e outras 86,6 milhões não conseguem se conectar todos os dias.

Por outro lado, em paralelo às pessoas desconectadas da internet, cresce o número de vendas de notebook, equipamento que deixou os computadores para trás. Esse movimento impactou no aumento da circulação de desktops e, consequentemente, no crescimento de oportunidades para as mulheres trabalharem na ressignificação ou reciclagem desses equipamentos.

De janeiro a maio de 2021 o Banco Nacional de Empregos (BNE) identificou 12.716 candidaturas femininas para vagas de tecnologia, contra 10.375 no mesmo período do ano passado. Outros dados divulgados pelo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), apontam que a participação feminina no mercado de tecnologia cresceu 60% nos últimos cincos anos, passando de 27,9 mil mulheres para 44,5 mil em 2020, o que reforça as oportunidades para elas no setor.

Mas apesar dos avanços significativos, ainda existem diversos pontos de desenvolvimento do mercado de tecnologia, que é o mais desigual entre gêneros nos quesitos de oportunidade e salarial. Hoje, as mulheres representam apenas uma fatia de 26,7% dos tecnólogos no país. Os dados são AnitaB.org, uma organização sem fins lucrativos global focada em gênero interseccional e paridade salarial em tecnologia. Outra Pesquisa de Remuneração Total, realizada pela consultoria Mercer, apontou que no mundo a disparidade salarial entre homens e mulheres chega a 36%. As discrepâncias se estendem para os níveis de gerência (7%) e operacionais (9%).

Isso mostra, entre outros aspectos, que ainda estamos diante de diversas barreiras em que o machismo é evidenciado. Por exemplo, em empresas de tecnologia, muitas vezes, as mulheres devem provar que são capazes e estão preparadas para realizar tarefas corriqueiras, como o atendimento ao usuário (help-desk), troca de impressoras, entre outras comprovações em que o homem não é submetido. Para mudar esse paradigma, é necessário inserir e ampliar temas envolvendo tecnologia desde cedo na educação, de forma que as mulheres adquiram confiança e segurança ao ingressar no segmento. Essa é outra vertente do Projeto Tech Girls que oferece curso e formação profissional por meio de uma metodologia afetiva para humanizar o aprendizado na área da tecnologia.

Além desse incentivo, ainda há um campo enorme a percorrer: desfazer estereótipos enraizados sobre as profissionais de tecnologia, valorizar o trabalho e as conquistas realizadas pelas mulheres na área e, provavelmente o ponto mais importante, oferecer oportunidades e salários justos, que levem em consideração o diferencial do profissional pelas suas qualificações e não pelo seu gênero.

São medidas que parecem simples, mas na prática, ainda são muito carentes. Quando tomadas poderão transformar o atual cenário, dando voz e espaço às mulheres competentes e que têm força de vontade de mudar o futuro desse setor e, consequentemente, da sociedade como um todo. Pode até parecer um clichê, mas as transformações no mercado vêm demonstrando, cada vez mais, que o lugar da mulher é onde ela quiser.

Gisele Lasserre é desenvolvedora de software e fundadora do Projeto Tech Girls

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