Maior crise hídrica da história: a natureza cobra a conta

Texto: Flávia Correia
Edição: Rafael Rigues

Estamos enfrentando grandes desafios globais nos últimos tempos. A pandemia de Covid-19, sem dúvida, é um deles. O mundo foi assolado pelo vírus Sars-CoV-2, que teve início na China, em 2019, e rapidamente se espalhou por quase a totalidade do planeta, onde segue fazendo estragos até os dias de hoje. Só no Brasil, já são cerca de 525 mil vítimas fatais da doença, num total acumulado de mais de 18,5 milhões de casos. Para completar o quadro trágico, estamos atravessando, simultaneamente, a maior crise hídrica da história.

Assim como o novo coronavírus, o problema da água ocorre em todo o planeta. Mas, também como o mortal agente infeccioso, a crise hídrica ganha contornos mais evidentes em países pobres e em desenvolvimento, embora atinja também as grandes potências mundiais, de alguma forma. E os efeitos dessa crise são, e tendem a continuar sendo, cada vez mais letais sobre milhões de pessoas, especialmente, os mais vulneráveis.

A partir da industrialização, as emissões de gases nocivos à atmosfera foram crescendo em ritmo acelerado. Na foto, fumaça de uma fábrica de etanol no Brasil. A partir da industrialização, as emissões de gases nocivos à atmosfera foram
crescendo em ritmo acelerado. Na foto, fumaça de uma fábrica de etanol no Brasil.
Crédito: Mauricio Graiki - Shutterstock

Com a Revolução Industrial, ocorrida no mundo a partir de meados de 1760, e, no Brasil, no fim do século XIX e início do século XX, o estilo de vida do ser humano começou a mudar em ritmo muito acelerado. Em consequência, as emissões de gases nocivos à atmosfera foram crescendo desenfreadamente, bem como outras alterações no meio ambiente provocadas pelo homem.

Especialistas alertam que, se a humanidade não tomar atitudes efetivamente capazes de conter esse avanço, será impossível ter uma sobrevivência sustentável nas próximas décadas.

Mudanças climáticas e ações humanas são componentes da crise hídrica

De acordo com o pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN), Giovanni Dolif Neto, doutor em Meteorologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o problema pode ser dividido em duas questões. Uma natural, parte do ciclo da natureza, e outra, humana.

Giovanni Dolif Neto, doutor em Meteorologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), é pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN). Giovanni Dolif Neto, doutor em Meteorologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE),
é pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN).
Crédito: Arquivo Pessoal

"Na componente natural, o clima do nosso planeta, ao longo da história, evoluiu, mudou muitas vezes. Já foi muito mais quente do que é hoje e já foi muito mais frio. Já tiveram vários ciclos de glaciações, quando boa parte da água ficou congelada e depois voltou a derreter. E esses diferentes momentos do clima do planeta também proporcionam uma distribuição das chuvas de uma forma diferente", declarou Dolif em entrevista ao Olhar Digital.

A história do planeta é muito mais longa do que a história do homem. O homem começou a se fixar há cerca de dez mil anos, com a revolução agrícola. Até então, ele era nômade, saindo em busca de regiões onde teria acesso a água e comida. "A partir do momento que começou a se fixar, ele contou com que o clima onde ele se fixasse fosse se manter ao longo do tempo", explica o meteorologista. “Acontece que, nesses dez mil anos, tivemos variações. Dez mil anos atrás, foi um período mais frio, por exemplo. Há cerca de dois mil anos, também tivemos alterações. Há mil e quinhentos anos, tivemos um período mais quente. Também voltamos a ter um período mais frio, cerca de um a dois séculos atrás. Então, essa oscilação do planeta vai acontecendo”.

Em um dado momento, o homem começou a se deslocar do campo para as cidades, no processo chamado de urbanização. Aqui no Brasil, esse movimento se intensificou junto ao desenvolvimento industrial e à crise do setor agrícola, ainda na primeira metade do século XX. A partir de 1950, mais da metade da população migrou para as cidades, onde vivem atualmente cerca de 85% dos brasileiros.

Segundo Dolif, como as cidades foram se estabelecendo com uma densidade demográfica muito grande, “a necessidade de água foi aumentando nessas regiões”. Com o estilo de vida que o homem assumiu nesses últimos mais de cem anos, especialmente nas últimas décadas, ele agiu ativamente sobre a natureza. “Passou a emitir muitos gases de efeito estufa, modificou o ambiente, desmatou, tirou muita vegetação de áreas onde ela era importante, especialmente em mananciais, na margem de rios. E, com isso, o ciclo da água foi perturbado. E, assim, também, a distribuição das chuvas”, explica o pesquisador.

O somatório do ciclo natural do clima com as ações humanas consequentes da urbanização teve resultados inevitáveis sobre o meio ambiente: mudança climática, esgotamento da camada de ozônio, acidificação dos oceanos e disponibilidade decrescente de água potável são algumas dessas consequências.

Limites planetários pela preservação da Terra: já ultrapassamos quatro de nove

Em 2009, um grupo de cientistas liderado pelo Stockholm Resilience Centre (SRC) identificou nove “limites planetários” na Terra. Eles são fronteiras ambientais seguras dentro das quais a humanidade pode se desenvolver sem que os impactos causados ao meio ambiente sejam irreversíveis.

Neste mês, a Netflix lançou o documentário “Rompendo Barreiras: A Ciência do Nosso Planeta (Breaking Boundaries: The Science of Our Planet)”, que trata justamente sobre os limites que já foram ultrapassados no nosso planeta e os que estão nos conduzindo a um ponto de inflexão, ou seja, uma posição praticamente irreversível, o que pode comprometer não apenas a estabilidade da Terra, mas o futuro da humanidade.

Documentário "Rompendo Barreiras: A Ciência do Nosso Planeta (Breaking Boundaries: The Science of Our Planet)", da Netflix, aborda os limites planetários que já foram ultrapassados na Terra. Documentário "Rompendo Barreiras: A Ciência do Nosso Planeta (Breaking Boundaries: The Science of Our Planet)",
da Netflix, aborda os limites planetários que já foram ultrapassados na Terra.
Crédito: Divulgação/Netflix

No documentário, o renomado cientista sueco Johan Rockström relata que do total de nove, quatro limites planetários já foram excedidos: a mudança no clima, a redução de florestas, a perda da biodiversidade e a alteração dos nutrientes nos cursos de água.

A obra apresenta depoimentos de alguns dos mais respeitados cientistas do mundo em suas áreas. O brasileiro Carlos Nobre está entre eles, falando sobre o desmatamento da Amazônia e o risco da maior floresta tropical do mundo se transformar em uma grande savana.

Nobre, que é coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT-​MC) e Senior Fellow no Brasil do Instituto de Recursos Mundiais (WRI, na sigla em inglês), afirma que a América do Sul é o continente com maior risco de extinção de espécies atribuível a essas mudanças. Nessa região do planeta, 25% das espécies locais desapareceriam com aumento de 4°C na temperatura global.

O cientista Carlos Nobre, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT-​MC). O cientista Carlos Nobre, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT-​MC).
Crédito: Tore Marklund / DIVULGAÇÃO. Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).

Duas das barreiras já ultrapassadas, a perda de biodiversidade e a mudança climática, têm relação direta com o desmatamento das florestas tropicais, locais que abrigam a maior biodiversidade terrestre e fluvial do planeta. O atual ritmo de desmatamento dessas florestas é responsável por aproximadamente 20% das emissões globais de gases de efeito estufa.

Carlos Nobre destaca a urgência de agir para combater as mudanças climáticas. “Necessitamos reduzir fortemente as emissões e aumentar drasticamente as remoções de CO2”.

Giovanni Dolif ilustra o rompimento desses limites planetários fazendo uma analogia com o ato de se quebrar um palito de madeira, daqueles de churrasco. “Se você vai fazendo força nas pontas do palito, ele vai envergando. Mas, chega num ponto que ele não consegue mais entortar, e aí ele quebra. Mesmo que você solte, ele não volta mais para o ponto que estava antes. Enquanto está entortando, se você soltar, ele volta. Mas, depois de um certo ponto, ele não volta mais. Então, o perigo é a gente atingir esse ponto no nosso planeta. Estamos entortando tanto, modificando tanto o meio ambiente, que, dependendo, se a gente recompuser, ele volta, mas pode chegar a um ponto em que não volta mais”, alerta.

Amazônia está próxima do ponto irreversível

Dolif afirma que, na Amazônia, isso está bem próximo de acontecer. “Estudos mostram que podemos estar muito próximos de chegar nesse ponto de não retorno. Isso acontece não necessariamente de uma forma geral, vai acontecendo aos poucos, em algumas áreas. No sul da Amazônia, que já foi mais devastado, a gente observa que as temperaturas têm ficado mais altas, a estação chuvosa tem sido mais curta, então, ali, já se observa a modificação no clima”.

Nobre também aborda a questão. Em um trabalho feito em parceria com o biólogo e ambientalista norte-americano Thomas Lovejoy, especializado em conservação, ecologia e biologia tropical, o climatólogo indica que a Amazônia está rumando rapidamente para o rompimento de seu limite.

Esse rompimento fará com que partes da floresta passem a se tornar áreas degradadas, transformando-se em vastos campos sujos. Isso aconteceria porque o equilíbrio da floresta amazônica é fruto de uma delicada, mas massiva corrente de transporte de água.

Essa corrente nasce no Oceano Atlântico e chega aos Andes, onde se vira em direção ao sul. A corrente não é linear, mas sim composta por sucessivos ciclos de chuva e evapotranspiração da floresta.

Amazônia está muito próxima do ponto de não retorno, ou seja: a situação pode ser irreversível. Amazônia está muito próxima do ponto de não retorno, ou seja: a situação pode ser irreversível.
Crédito: luoman - iStockphoto.

Remover as árvores enfraquece, portanto, essa corrente. Uma quantidade menor de água circulando na região, por sua vez, é fatal para o tamanho da floresta. Espécies arbóreas menores e menos sedentas tomam o lugar do grande emaranhado de árvores e espécies simbióticas.

Nobre e Lovejoy estimam que o ponto de ruptura deve acontecer quando a floresta perder entre 20% e 25% da sua cobertura original. E, segundo o INPE, 17% do bioma já foi perdido. Mas, para Nobre, a perda está mais próxima dos 20%, pois ele considera no cálculo as áreas severamente degradadas e aquelas onde a floresta está se recuperando (embora sem a riqueza anterior).

Ao longo da história, o homem também fez estragos em outras regiões do país. “Na região sudeste, por exemplo, a gente desmatou quase toda a Mata Atlântica. Bem mais de 90% foi desmatado. Isso tem uma influência na quantidade de vapor que vai para a atmosfera”, explica Giovanni Dolif. “Cada vez que vem uma frente fria ou que dá uma chuva de verão, você tem menos vapor na atmosfera. São efeitos que são gradativos - a atmosfera não responde de uma forma linear. Ela vai se modificando até que a gente chega num ponto de não retorno”, alerta.


Projetos de Lei em tramitação tendem a agravar o cenário

Cientistas e ambientalistas alertam para o fato de que a aprovação combinada de certos projetos de lei (PL) pode fazer a floresta amazônica ultrapassar seu ponto de ruptura.

A Agência Lupa e o Fakebook.eco prepararam um material explicando quatro propostas que tramitam no Congresso e por que elas podem favorecer o avanço do desmatamento da Amazônia.

Entre essas propostas estão o PL 3.729/2004, que flexibiliza o licenciamento ambiental e o PL nº 2.633/2020, conhecido como PL da grilagem, que pode facilitar à ocupação ilegal de grandes glebas de terras públicas.

Se aprovados, esses dois PLs poderão significar uma sentença de morte para parte importante da floresta ao sul do rio Amazonas.

Em sua versão atual, o PL do licenciamento dispensa, por exemplo, a licença ambiental para ampliação e melhoria de estradas, uma receita historicamente comprovada para o aumento do desmatamento. Muitas das estradas na Amazônia, existentes e projetadas, estão cercadas por terras públicas.

Em consequência, uma vez construídas ou melhoradas as estradas, entra em ação o PL da grilagem, que permite a regularização autodeclarada de até 2.500 hectares. Isso dá um sinal claro para a ocupação dessas terras públicas.

Uma olhada rápida na dinâmica de ocupação das áreas próximas a novas estradas indica que se desmata anualmente 2 km quadrados de floresta para cada quilômetro de estrada ampliada e/ou asfaltada.

Outros dois projetos de lei que representam uma ameaça à preservação dos biomas brasileiros são o PL nº 191/2020, que libera atividades econômicas como a mineração dentro de terras indígenas (TIs), e o PL nº 490/2007, considerado uma das mais graves ameaças aos povos indígenas.

O projeto que pretende liberar a mineração em terras indígenas, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, ameaça pelo menos 863 mil km² na Amazônia e pode causar prejuízo anual de US$ 5 bilhões, segundo indica um estudo de pesquisadores brasileiros e australianos publicado na revista científica One Earth.

O PL propõe regulamentar garimpo, mineração, geração de energia elétrica, exploração e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos nessas áreas, além do plantio de transgênicos. A proposta, que foi elaborada em 2019 pelos ministérios da Justiça e Segurança Pública e de Minas e Energia, sem a participação de comunidades indígenas, é fortemente criticada por organizações da sociedade civil, pesquisadores e lideranças indígenas, por representar uma ameaça aos povos tradicionais.



Impactos da agropecuária não sustentável

No Brasil, a atividade agropecuária e o desmatamento são as maiores fontes de emissão de gases de efeito estufa. Segundo Nobre, 70% das emissões brasileiras vêm daí, enquanto 80% das emissões na China são provenientes da queima de combustíveis fósseis, que também é a maior responsável no resto do mundo. Mas, as emissões do setor agropecuário mundial estão também em uma crescente, sendo de difícil redução.

Quando florestas ou outros sistemas naturais, como o cerrado e as savanas, são abertos para a agropecuária, o carbono armazenado nas árvores, nos solos e na vegetação é lançado à atmosfera.

Se o mundo quiser evitar que a temperatura média global aumente 2°C em relação à era pré-industrial, estudos sugerem que, até 2030, as emissões de gases precisarão cair para um quinto – de mais de 5 bilhões de toneladas de CO2 hoje para 1 bilhão em 2030.

É possível reduzir as emissões da agropecuária por meio de maneiras sustentáveis de produção de alimentos, passando por uma mudança de paradigma da agropecuária industrial para os métodos que reduzam os impactos. Aí, se incluem o uso de plantio direto para a preservação do carbono do solo e a limitação do uso de fertilizantes químicos.

Alterações nos ciclos das chuvas

Dolif explica que a agricultura e a pecuária, bem como o desmatamento, atuam também na perturbação dos ciclos da água, quando realizadas de forma desgovernada e sem sustentabilidade. “Os biomas naturais têm uma interação com a atmosfera, eles participam ativamente dos ciclos da água. Então, quando você modifica essa vegetação, você está alterando esses ciclos. Você vai mudar as regiões onde a chuva acontece, e o volume de chuva que vai cair em certas áreas”.

Segundo o especialista, com a elevação global das temperaturas, o planeta fica mais compatível com uma maior frequência e intensidade de extremos do clima: tanto no excesso como na escassez de chuva.

“A gente tem observado, especialmente na última década, uma sequência de eventos muito próximos, de amplitude muito grande”, afirma Dolif, relatando que, no Brasil, dois fenômenos extremos estão acontecendo ao mesmo tempo. “A última temporada de chuva começou atrasada. Sempre começa por volta de outubro, e nós só fomos ter chuvas de fato mais significativas em dezembro. Deveria ter terminado em março deste ano, mas terminou antecipadamente, e em março quase não choveu. Tivemos uma estação chuvosa muito escassa na maior parte do país, de 2020 para 2021. Ao mesmo tempo em que a gente observa lá na Amazônia, principalmente na parte central e norte, uma cheia histórica. O Rio Negro, em Manaus, atingiu um nível historicamente alto, muito acima da média, batendo recordes. Então, a gente tem num mesmo país dois extremos, um com excesso de chuvas e inundações, enquanto a maior parte sofre com a escassez de chuva”.

Dolif explica que essa escassez da última estação chuvosa soma-se aos anos anteriores, quando também tivemos chuvas abaixo da média. “Desde a crise de 2014-2015, os reservatórios não conseguiram se recuperar. A gente vinha, ano após ano, esperando uma temporada de chuva mais volumosa, para repor os reservatórios, mas isso não acontecia. E aí, nessa última temporada de chuva, foi um volume bem pequeno, o que culminou nessa crise histórica”.

 Sistema Cantareira operando na reserva técnica, durante crise hídrica de 2014-2015. Sistema Cantareira operando na reserva técnica, durante crise hídrica de 2014-2015.
Crédito: Divulgação/Sabesp.

De acordo com o meteorologista, na história recente, com uma demanda de água e de energia como a que temos hoje, o Brasil não tinha enfrentado uma situação de reservatório tão baixa. “A combinação de falta de chuva, nível baixo de reservatórios e a demanda de água e de energia faz com que a gente tenha uma situação sem precedentes”.

Um ponto muito evidente é que a água é mal distribuída no nosso país. As regiões mais ricas em água são as de menor concentração populacional.

Enquanto a cidade de São Paulo, que concentra o maior número de habitantes do Brasil, é abastecida pelo reservatório da Cantareira, que, hoje, conta com apenas 38,9% da capacidade (volume mais baixo desde 2017), a Bacia do Rio Amazonas, por sua vez, é a região que concentra mais água no Brasil.


Crise hídrica requer providências imediatas e a longo prazo

Dolif cita algumas medidas que podem ajudar a conter o problema, e elas devem ser tomadas em curto, médio e longo prazo. “A curto prazo, o que precisamos fazer é ter um consumo mais racional, seja de água, seja de energia elétrica. Então, são necessárias campanhas educativas para orientar as pessoas a usarem de forma mais inteligente e mais eficiente a energia e a água. E, considerando mais a longo prazo, precisamos repensar a nossa forma de gerar energia”.

Ele indica a utilização de fontes de energia renováveis, que não dependam somente da água, “que é uma fonte renovável, mas oscila”. “Estamos vendo que ela pode vir em quantidade insuficiente para prover energia. Então, a gente tem que investir em outras fontes. Por exemplo, fontes eólicas, utilizando o vento, ou fontes solares, utilizando o Sol. Essas fontes têm uma variação menor. A gente consegue planejar melhor essas fontes de energia”, afirma.


Energias eólicas e solares são exemplos de fontes renováveis, que podem ser melhor planejadas, de acordo com o meteorologista Giovanni Dolif. Energias eólicas e solares são exemplos de fontes renováveis, que podem ser melhor planejadas, de acordo com o meteorologista Giovanni Dolif.
Crédito: Diyana Dimitrova - Shutterstock.

O especialista diz que o Brasil já tem investido, principalmente, na energia eólica. “A região nordeste já compõe boa parte da matriz energética, mas ainda precisamos avançar nessa área. E a solar ainda mais, que ainda representa uma porcentagem muito pequena da matriz energética do Brasil”.

Com reservatórios baixos para produzir energia, o governo acaba precisando lançar mão do uso das termelétricas, que, segundo Dolif, produzem uma energia que, além de ser suja, porque poluem e emitem gases de efeito estufa na atmosfera, é também mais cara. “Na nossa conta de luz, nós já estamos pagando mais caro”.

E não se pode negar que a responsabilidade é de todos. “Se a gente tiver um consumo mais consciente, mais inteligente, a gente contribui para minimizar essa crise, e, portanto, para que esse custo da energia elétrica diminua", orienta Dolif.

Além do consumo consciente, que é uma atitude individual, atitudes coletivas devem ser consideradas. O pesquisador dá um exemplo simples: “Nos telhados das casas e dos edifícios, a gente pode ter vegetação e coleta de água da chuva. A água utilizada nos condomínios e nas casas podem vir da captação de água da chuva, que tem dois benefícios: além de você aproveitar melhor a água pluvial e usar menos a dos mananciais, também minimiza o impacto de chuvas mais fortes, que acabam causando muitos problemas nas cidades, como alagamentos e inundações”.

O que vemos, hoje, é muita água em cima de uma superfície impermeabilizada, que corre e escoa rapidamente para as bocas de lobos e córregos, que não dão vazão a todo esse volume. “Então, se essa água das chuvas for captada nas casas e nos condomínios, ela não vai escoar com tanta velocidade para as ruas e galerias pluviais, e, com isso, a gente atenua esses alagamentos durante o verão que causam muitos problemas em cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro”, explica Dolif, afirmando que, com uma mesma medida é possível atuar em duas frentes diferentes: minimizando impactos de chuvas fortes e reduzindo também o efeito da falta de chuva e do baixo nível de reservatórios.

Em relação às comunidades mais carentes, Dolif acredita que é importante que haja políticas públicas de financiamento mais barato de medidas como essa, de captação de água da chuva, e também de utilização de energia solar, por exemplo, para aquecimento de água. “O chuveiro elétrico é um grande vilão do consumo de eletricidade. Agora, a gente está num período mais frio, então esse consumo nos chuveiros elétricos aumenta bastante. Programas de financiamento a baixo custo de aquecimento solar da água ajudam”.

Embora algumas dessas iniciativas já tenham sido tomadas em certas localidades, ainda correspondem a uma escala muito pequena para fazer de fato uma diferença. “O ideal seria que a gente tivesse uma ampliação desses programas para que o uso da energia solar pontual nas casas pudesse atenuar a demanda de consumo da rede e pudesse poupar um pouco dos grandes reservatórios que fornecem energia para o país”, afirma Dolif.


Matar a sede da população também é um desafio

A água é um recurso primordial para o consumo de energia e o saneamento básico. De acordo com o documentário Brave Blue World (2020), também disponível na Netflix, dados da Fundação Bill e Melinda Gates afirmam que 1.200 crianças menores de cinco anos morrem por dia por falta de saneamento.

"Milhões de bebês e crianças morrem todos os anos por falta de acesso à água, saneamento, nutrição adequada ou serviços básicos de saúde", afirma Princess Nono Simelela, Diretora Geral de Saúde da Família, da Mulher e da Criança da Organização Mundial de Saúde (OMS).


No leste e no sul da África, mais de 58% das crianças não têm água suficiente para viver. No leste e no sul da África, mais de 58% das crianças não têm água suficiente para viver.
Crédito: Pnud/Karin Schermbrucker/Slingshot - via: Unicef.

Dolif explica que, diferentemente do que acontecia na época inicial da urbanização, quando as cidades cresciam em torno e em função dos rios, “muitas cidades viraram as costas para os rios”.

“Antigamente, as pessoas se colocavam de frente para o rio. Eu conheço exemplos de cidades pequenas que nasceram de frente para o rio, mas que, atualmente, estão de costas. Muitas pessoas, nas cidades, nem lembram exatamente de que lado fica o rio. Então, nós viramos as costas para os rios”, lamenta o pesquisador.

E esse “virar as costas” não foi somente literalmente, mas também no sentido de menosprezo à importância das águas fluviais: nós abandonamos os nossos rios. “Eles se tornaram apenas uma via de escoamento daquilo que não presta para a gente: esgoto e lixo”.

Dolif afirma ser primordial que haja um resgate. “E isso começa com campanhas educativas e políticas públicas para limpar e revitalizar, e para chamar atenção da população para essas áreas na margem dos rios. Trazer de volta também a mata ciliar, aquela vegetação que ajuda a manter a água do rio, não somente a existência da água, mas mantê-la limpa”.

O pesquisador acredita que devemos tornar esses ambientes mais saudáveis, mais convidativos e valorizados. “Com isso, a gente já faria bastante diferença na disponibilidade de água para a população”.

Ciência só pode ser refutada por Ciência, não por opinião

Nos dias de hoje, os ambientalistas têm enfrentado, no mundo todo, muita resistência por parte de uma parcela da população. Aqui no Brasil, essa corrente parece ganhar cada vez mais adeptos. Pessoas que insistem em não querer enxergar ou negar que essa e outras situações estejam de fato ocorrendo: são os chamados “negacionistas”.

Para Dolif, que consolidou todo seu conhecimento na área com base em muito estudo (desde o bacharelado, passando pelo mestrado, chegando ao doutorado, além de toda sua vivência como pesquisador científico de instituições sérias e conceituadas), a divergência de ideias é saudável e sempre bem-vinda. Desde que pautadas por fatos cientificamente comprovados (ou, pelo menos, comprováveis). “Ao longo da história, muitas vezes, grandes pensadores foram depois corrigidos posteriormente por outros pesquisadores. Então, ao longo da história, a gente vê que acontecem correções e ajustes no conhecimento. Mas, isso é saudável para a Ciência desde que seja baseado em fatos, em procedimentos empíricos, científicos, objetivos e claros, que possam ser reproduzidos por outros pesquisadores”.

Ele explica que toda metodologia científica precisa ser reprodutível por outras pessoas para que tenha uma validade, uma credibilidade. “O problema é que, hoje em dia, a gente vê muitas ideias negacionistas, mas sem que eles tragam uma metodologia robusta para mostrar essa ideia contrária, para argumentar e defender uma hipótese. Isso acaba gerando apenas ruído, confusão, desinformação e atrapalha o processo”, afirma.

Na última década, poucos estudos realmente sérios apresentaram ideias com metodologias científicas contrárias à questão das mudanças climáticas e ao aquecimento do planeta, segundo Dolif. “Mas, algumas ideologias ainda insistem em trazer ideias negacionistas, sem embasamento científico”.

Ainda assim, é uma parcela tão ínfima da população mundial, que, para a comunidade científica, não chega a fazer realmente a diferença. “Atualmente, a imensa maioria dos pesquisadores e cientistas no mundo concordam com a ideia de que o nosso planeta está aquecendo e que esse aquecimento é compatível com o aumento de extremos do clima”, garante o meteorologista.

Para ele, são interesses distintos. “Tem grandes interesses econômicos e muito dinheiro envolvido, então é natural que aqueles que se beneficiam financeiramente dessa destruição do meio ambiente queiram defender a ideia contrária, o negacionismo, dizendo que essa destruição não tem impacto no nosso clima”.


Interesses econômicos não podem se sobrepor à vida do nosso planeta

A corrente negacionista tem uma relação muito próxima, talvez de causa e efeito, com aspectos políticos e econômicos. Tenta-se descredibilizar o que pode representar uma ameaça a interesses particulares, de poder e de ordem financeira.

É notório que o descaso com o meio ambiente refletirá no futuro das próximas gerações, como as atitudes desenfreadas de décadas atrás têm refletido agora.

Quando nos preocupamos com o desenvolvimento econômico em detrimento às questões ambientais, estamos negligenciando um problema que é de todos. É necessário e urgente haver um equilíbrio entre a importância dos recursos econômicos e a utilização dos recursos naturais, porque já está mais do que comprovado que, embora gigantescos, eles são limitados.

Isso é desenvolvimento sustentável. Quando a questão ambiental e as questões econômicas caminham em harmonia, tendo consciência de que um depende do outro.

Desenvolvimento sustentável equilibra as questões econômicas e ambientais, e é a chave para o futuro da humanidade. Desenvolvimento sustentável equilibra as questões econômicas e ambientais, e é a chave para o futuro da humanidade.
Crédito: PopTika - Shutterstock.

Dolif acredita que, como os efeitos nocivos da exploração humana sobre o meio ambiente vêm ficando cada vez mais evidentes, a tendência é que as pessoas e as empresas se conscientizem. “Esses que resistem, em algum momento, dependendo da política, do governo, a tendência é que essas ações que são destruidoras do meio ambiente percam força, percam financiamento”.

Ele destaca que existem diversas iniciativas de empresas e instituições financeiras, públicas e privadas, já alinhadas com a questão ambiental. “Apesar de alguns setores ainda insistirem em não enxergar isso, grandes linhas de financiamento de grandes bancos ou auxílios de grandes fundos vão sendo direcionados para proteção e defesa do meio ambiente”.

Para o pesquisador, “as empresas que saem na vanguarda e percebem que destruir o meio ambiente é uma coisa do passado, e começam a defender uma ideologia de uma produção mais sustentável, tendem, no futuro, a prosperar mais do que essas outras que não entenderam ainda isso”

Tratar a natureza como um aliado, explorando seus recursos da maneira correta, pode ser a forma de trazer o equilíbrio que a questão requer: desenvolvimento econômico sem destruição do meio ambiente. “Tem muitas maneiras de a gente tirar riquezas a partir da floresta. Então, é possível tirar riqueza da floresta amazônica mantendo ela em pé, sem destruí-la. Tem uma riqueza biológica, genética, para produzir cosméticos, produzir remédios. A cura de muitas doenças pode estar ali. Então, a pesquisa dessa riqueza biológica pode trazer recursos financeiros muito grandes, sem destruir a floresta” alerta Dolif.

Está mais do que claro: se a água é um bem essencial, a falta dela tem impactos sociais, econômicos e ambientais. Por isso, a necessidade de uso racional e consciente da água e de outros recursos naturais.

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Texto: Flávia Correia

Edição: Rafael Rigues

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