Um dos movimentos mais consistentes da indústria de processadores tem sido feito justamente por empresas que não são desse segmento. Afinal, cada vez mais, as gigantes da tecnologia têm trabalhado na produção de chips. Google, Apple, Samsung, Amazon, Huawei, Facebook e Microsoft são alguns dos nomes que já dão seus passos no universo da microeletrônica.

Criar processadores e vendê-los para terceiros, no entanto, requer um investimento significativo em pesquisa e desenvolvimento. Isso sem contar que os chips obedecem a padrões de arquitetura específicos, que devem ser seguidos na produção. “Montar uma fábrica de processadores custa dezenas de bilhões de dólares”, diz Pietro Delai, gerente de Consultoria e Pesquisa da IDC Brasil. “Por isso, só se justifica se o volume for realmente alto.”

Esse é um dos motivos pelos quais a Qualcomm é, hoje, a maior provedora de chips para celulares. A companhia desenvolveu a tecnologia que permite que os smartphones se conectem às redes móveis e detém patentes relacionadas às redes 3G, 4G e 5G. Graças a isso, boa parte de suas receitas vem do licenciamento de uso desses componentes. Ou seja, mesmo que as fabricantes de dispositivos comprem peças dos concorrentes, devem pagar royalties à Qualcomm.

Nesse cenário, a Apple é uma das mais inconformadas. Um modem para conectar seus iPhones às redes móveis custa US$ 30. A Qualcomm cobra US$ 7,50 a cada dispositivo equipado com o item. Isso representa 25% do custo do componente — e, para a Apple, uma tarifa de 5% seria o justo nesse caso. Mesmo assim, a empresa da maçã é obrigada a usar os chips da Qualcomm e sofre com a política de ‘sem licenciamento, sem componentes’ imposta pela fabricante de processadores.

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Uma batalha judicial entre a Apple e a Qualcomm na Alemanha, por exemplo, levou a criadora dos iPhones a ter seus produtos barrados naquele país no início de janeiro. Tudo porque a marca da maçã equipou os modelos 7, 7 Plus, 8 e 8 Plus com chips fabricados pela Intel. Depois de muita briga, nesta semana, a Apple aceitou voltar a usar os processadores da Qualcomm nesses aparelhos e teve a venda dos dispositivos liberada por lá.

A fabricante de chips enfrenta ações semelhantes movidas por diversas empresas em várias partes do mundo. A alegação é de que suas patentes afetam a competitividade da concorrência — a companhia nega e diz que não há evidências de que adote esse tipo de prática contra outras produtoras de processadores.

Por que fabricar chips?

E foi em meio a esse contexto que algumas das mais importantes empresas de tecnologia passaram a voltar suas atenções ao desenvolvimento de processadores. O Google estendeu seus braços para contratar especialistas na Índia, o Facebook foi em busca de um gerente para cuidar desse segmento dentro da empresa, a Amazon comprou o Annapurna Labs (uma fábrica de processadores em Israel), a Microsoft montou uma equipe para atuar no desenvolvimento de chips e assim por diante.

O que existe hoje é uma dependência mútua: as fabricantes de dispositivos precisam dos chips fornecidos pelas empresas de processadores e vice-versa. Nesse sentido, toda essa movimentação — recheada de intervenções da Justiça — garante que o mercado se torne mais diversificado. “É muito bom ter acesso a fornecedores diferentes”, diz Eduardo Tude, presidente da Teleco. “Isso aumenta o poder de negociação das organizações. É como dizer: ‘fique atento, pois você não é a única alternativa’.”

A considerar todas as variáveis envolvidas, parece claro que o objetivo dessas companhias não é competir com as fabricantes de processadores. Como esses componentes são extremamente complexos e requerem um grande esforço de pesquisa e desenvolvimento, para que seja viável produzi-los, é fundamental que haja requerimentos de volume que justifiquem a operação. Qual é, então, o intuito das companhias que têm ido nessa direção? Há algumas possibilidades, mas esse processo está atrelado a vários aspectos.

Para começar, existe, atualmente, uma tendência de as empresas diversificarem suas atividades. O dinamismo do mercado as obriga a isso: afinal, é preciso estar sempre um passo à frente das necessidades para não ser pego de surpresa por elas. “As organizações têm procurado se verticalizar”, comenta Renato Grau, diretor da Innovision. “Elas já se preocupam com as tecnologias que estão sendo desenvolvidas agora e que vão ser importantes no futuro.”

Nesse sentido, desenvolver os próprios chips é um caminho interessante para aplicações específicas em determinados nichos. Especialmente aquelas relacionadas a servidores, inteligência artificial, aprendizado de máquina, internet das coisas e computação em nuvem. Essas áreas estão se desenvolvendo muito e requerem atenção.

Isso sem contar que a demanda por processamento cresce continuamente. Com a internet das coisas, o volume de informação tem aumentado exponencialmente. “Ainda neste ano, é possível que quebremos a barreira dos zetabytes aqui no Brasil”, informa Delai. “E ninguém coleciona dados à toa. É preciso usá-los em busca de insights e isso requer processadores capazes de lidar com analytics.”

Além disso, segundo Arthur Igreja, especialista em Tecnologia e Inovação e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), com o tempo, as empresas perceberam que adotar a verticalização ajuda a melhorar o desempenho dos dispositivos. “Faz sentido ter chips criados sob medida”, avalia. “É graças a eles, por exemplo, que os equipamentos da Apple são mais eficientes que modelos de outras marcas com configurações mais potentes. Quando os componentes são feitos para o software e vice-versa, o rendimento é superior”, completa.

A arquitetura é um dos aspectos mais importantes

O fator software, inclusive, é bastante relevante quando se pensa no desenvolvimento de chips. No caso dos computadores, por exemplo, quase todo o parque tecnológico atual usa a plataforma X86 e os programas são desenvolvidos para ela. Estabelecer uma nova arquitetura dificultaria o uso dos pacotes de software existentes atualmente, já que afetaria sua compatibilidade. “O mundo hoje é movido a software e boa parte dos programas que existem não vai poder ser executada se houver um novo padrão a essa altura”, lembra Delai. “Então, é na especialização que há espaço. Em áreas como inteligência artificial, aprendizado de máquina e internet das coisas, por exemplo. Provavelmente, é lá que essas empresas vão atuar: como os programas para esses segmentos ainda estão sendo elaborados, é possível ter arquiteturas novas.”

Uma arquitetura que tem ganhado destaque é a Advanced RISC Machine (ARM), usada em processadores que equipam smartphones e tablets. Suas principais características são o baixo consumo de energia e dissipação de calor, que fazem que os chips não necessitem de ventoinha, ocupem menos espaço na placa-mãe e, assim, permitam ter aparelhos mais finos e com mais espaço para uma bateria de maior capacidade, por exemplo. A Qualcomm já usa a plataforma em processadores para computadores e ela pode se tornar ainda mais popular com a internet das coisas.  

Segmentos que demonstram potencial para o uso de novas arquiteturas incluem, ainda, a computação quântica e a computação fotônica. Embora ainda sejam projetos embrionários — e que devem demorar pelo menos uma década para de fato se tornarem comerciais —, as novidades vão começar a surgir com cada vez mais frequência. Não espere, porém, entrar em uma loja e comprar um equipamento com essa tecnologia: é provável que, para o consumidor final, ela só esteja disponível na nuvem. “É necessário usar sistemas criogênicos para garantir a refrigeração desse tipo de sistema. E isso não pode ser incluído em um celular, por exemplo”, alerta Delai.

A consultoria Gartner estima que, até 2025, 40% dos chips para esse tipo de aplicação específica (Application-Specific Integrated Chips – ASICs) devem ser desenvolvidos fora das atuais fabricantes de processadores. “Hoje, 30% deles têm essa característica”, diz Gaurav Gupta, analista sênior do Gartner. “Em 2018, a renda total de ASICs foi de cerca de US$ 29 bilhões. Dá para ter uma ideia do que isso vai representar em cinco anos.”

Interesse no controle da informação

Outro aspecto relevante é o controle sobre a informação. Existem especulações de que seja possível usar brechas no hardware para se beneficiar. “É por isso que dispositivos chineses são barrados nos EUA”, conta Igreja. Mesmo assim, parece pouco provável que exista toda uma rede de desenvolvedores disposta a explorar essa possibilidade. “Embora seja bastante difícil, tecnicamente é possível fazer isso. Usa-se, então, um aspecto técnico para mascarar razões comerciais e, assim, garantir o protecionismo.”

Vale lembrar que a Intel teve dificuldades há pouco mais de um ano quando foram encontradas vulnerabilidades em seus processadores. Praticamente todos os chips que a marca produziu durante uma década tinham brechas graves de segurança — em computadores com Windows, MacOS e Linux. Aparentemente, a falha dava acesso a senhas, detalhes de login e outras informações protegidas. Por isso, todo o aspecto de segurança das máquinas, até então garantido pelos processadores da Intel, teve de ser delegado aos sistemas operacionais (que tiveram de ser atualizados para fazê-lo).

De forma geral, então, embora as empresas de tecnologia não pareçam ter interesse direto em competir com as fabricantes de processadores, se as produtoras de chips quiserem continuar relevantes vão ter de se mostrar realmente expressivas para o mercado. “É a hora de elas pensarem em se reinventar, assim como as desenvolvedoras de dispositivos têm feito”, acredita Grau. “Naturalmente, algumas empresas na cadeia de valor vão perder negócios, enquanto outras vão ganhar”, completa Gupta.