Ainda não vi “Retrato de uma Jovem em Chamas”, de Céline Sciamma. Estava bastante curioso porque adoro o filme anterior da diretora, intitulado simplesmente, e simbolicamente, “Garotas”. E, querendo ou não, o autorismo faz parte de meu repertório crítico, de modo que uma diretora ou um diretor que já tenha se revelado interessante ganhará sempre minha atenção máxima.

Mas nesta semana fui informado que possivelmente não gostarei de “Retrato”, por se tratar de um “filme de meninas”. Segundo a cineasta Marina Person (dos belos longas “Person” e “California”), num texto publicado na Folha de S. Paulo em 14 de janeiro, homens tendem a não gostar do filme de Sciamma. Ela escreveu como resposta a um texto de Inácio Araujo, em que o crítico afirma que o longa é desinteressante, conferindo-lhe duas estrelas de cotação.

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Gregório Duvivier, num tuíte mais do que equivocado, sugeriu que todos os homens que ele conhece odiaram o filme, e todas as mulheres amaram. Ainda estou tentando descobrir se foi ironia ou só mais uma lacração de esquerdomacho. Ele já se retratou, mas resta a desconfiança.

Nada contra o ponto principal de Marina Person em seu texto. Pelo contrário: tudo a favor. Realmente, o mundo do cinema sempre foi dominado por homens, e o da crítica também. É necessário mais mulheres dirigindo, escrevendo, trabalhando nas funções mais criativas do cinema (bem, montadoras, creio, são maioria há muito tempo, o que é ótimo). Do mesmo modo que é vital termos muito mais mulheres na crítica.  

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Nas oficinas de crítica que ministro desde 2009, aliás, a maior parte dos bons textos são de mulheres, mas elas, compreensivelmente, acabam indo para outras áreas, como roteiro ou a academia, por não se sentirem incentivadas no meio crítico (mesmo que esse meio já não dê mais futuro para ninguém).

Mas o que pode se desprender do texto da Marina é uma ideia com a qual eu nunca consegui concordar, e enfraquece seu clamor principal, que é justo e necessário. O texto dá a entender que existem filmes para meninos e filmes para meninas. Ou eu entendi errado? É uma lógica que deve agradar em cheio nossa Ministra Damares. Meninos de azul vendo “Rambo”, meninas de rosa vendo “Adoráveis Mulheres”. E no entanto, nada mais equivocado do que essa visão.

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Claro que uma mulher verá um filme de maneira diferente de um homem (e por isso é necessário termos mais mulheres no cinema, incluindo a crítica). Mas cada mulher verá um filme diferente, assim como cada homem verá um filme diferente também, e os homossexuais, os trans, as trans, as lésbicas, os bissexuais, os negros, os índios… Temos, cada um de nós, cada pessoa, uma história de vida que em alguma instância irá diferir bastante da história de outra pessoa, mesmo daqueles que têm uma história de vida parecida com a nossa.

Quero dizer que ninguém vê o mesmo filme que eu vi, assim como eu não tenho como ver o mesmo filme que cada outro espectador ou espectadora viu. Logo, existem diferentes sensibilidades em contato com uma obra de arte, e apesar de uma obra se apresentar da mesma maneira para todos, cada um de nós a receberá de uma forma diferente. Ainda mais um filme de 90, 100, 120 minutos. Posso concordar com algum(a) colega crítico(a) que um mesmo filme seja adorável. Mas não são todos os momentos que me prenderam a esse julgamento que coincidirão com os dele(a). Pode até acontecer, mas é raro.

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Minha mãe, dona de casa desde que se casou, adora faroestes. Ela ainda prefere os faroestes spaghetti, mais sujos e amorais que os americanos. Ninguém, em sã consciência, daria de presente para uma simpática senhorinha de 83 anos um DVD de faroeste spaghetti. No entanto, ela o receberia com entusiasmo, e ficaria ansiosa para vê-lo assim que possível. Não serei eu quem a tirará desse prazer falando, do alto de minha insignificância: “isso é filme de menino, mamãe”.