O que o filme espanhol “A Casa” (2020), produção original da Netflix dirigida por Àlex e David Pastor, mostra é basicamente o que todos nós sabemos. No império da ganância que se tornou boa parte do mundo trabalhista, mais vale um trabalhador medíocre ganhando pouco do que um trabalhador talentoso ganhando mais ou menos.

O caso de Javier (Javier Gutiérrez) é pior. Publicitário bem sucedido de Barcelona, criador de comerciais que mostram um mundo idílico, sem problemas e sem sujeira, típico de comercial de margarina, mas impotente na hora de mover mundos e fundos para depender só de si, acaba na rua e deve se submeter às humilhantes entrevistas de emprego, conduzidas geralmente por jovens que não entendem bulhufas da área, mas conhecem muito bem a arte da humilhação. Ou por adultos que conhecem bem o trabalho dele, mas não podem arcar com um salário decente e por isso o desprezam.

De entrevista em entrevista, Javier vai se afundando cada vez mais na falta de perspectivas de quem já teve um padrão de vida de classe média alta e agora tem de se acostumar a viver com o poder de compra reduzido. É obrigado a entregar seu luxuoso apartamento e morar como os mortais, num simples apartamento com torneiras que fecham mal. Ele passa então a se intrometer na vida dos novos moradores.

Ao super qualificado que não encontra mais seu lugar na sociedade corporativa restam duas alternativas: igualar-se aos medíocres, reduzindo sua potência até encontrar um maior número de interlocutores; ou cair na vala moral do ressentimento, perseguindo e procurando destruir quem não merece status segundo sua moral duvidosa. Javier escolhe o segundo caminho, e vai encontrá-lo pavimentado até a destruição (de quem?).

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A destruição do ressentido será sempre maior do que a de seus alvos. A não ser que nada de humano tenha permanecido e ele já tenha virado um monstro de cobiça e inveja, vivendo em seu mundo ideal de comercial de margarina, sem qualquer culpa, sem remorsos, o retrato da elite econômica no mundo atual.

Os irmãos Pastor, nascidos em Barcelona, cujo primeiro longa, “Vírus” (2009), estreou no Brasil, até que se esmeram num roteiro do tipo quebra-cabeça neste terceiro longa. Mas subestimam a inteligência do espectador ao entregar demais com algumas explicações desnecessárias e, principalmente, com uma direção frágil em momentos importante, como aquele em que a esposa de Javier o segue sem perceber que ele a toda hora olha para trás, visualizando sua perseguidora, sendo que na mesma imagem vemos os dois a uma distância em que a não percepção, por parte dela, de que ele a percebeu, seria praticamente impossível.

Esse tipo de descuido enfraquece o thriller e nos deixa apenas com um personagem que a cada minuto se envolve mais e mais com o mal absoluto. Um personagem verdadeiramente desagradável, por nos lembrar no que se transformou o mundo nos últimos anos.

* Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema