Se você é um fã de esportes, então somos capazes de apostar (com o perdão do trocadilho) que você já viu empresas como Bodog, SportingBet ou Bet365 nos intervalos do horário nobre ou em publicidades expostas em estádios dos jogos brasileiros e internacionais. Essas casas de apostas online atuam em grande escala no Brasil, por mais que a legislação diga que tais atividades sejam proibidas por aqui.

Segundo o site alemão de pesquisas Statista, o mercado global de apostas online atingiu valoração de US$ 66,7 bilhões (R$ 364,91 bilhões na conversão direta) em 2020 – com previsão de chegar à marca de US$ 92,9 bilhões (R$ 508,03 bilhões) até 2023. Por aqui, o mesmo site indica o número de US$ 8,6 bilhões (R$ 47,08 bilhões, em números corrigidos) como a soma das apostas legais e ilegais…em 2016. Certamente, o mercado já era aquecido naquela época e, com a entrada das empresas acima, é bem provável que este número tenha aumentado.

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apostas online
As apostas online encontraram nos esportes um nicho para oferecer seus serviços no Brasil, mas a legislação sobre o assunto ainda é confusa para muitos. Imagem: Wpadington/Shutterstock

Mas de acordo com o Decreto-lei 9.215, de 30 de abril de 1946 (assinado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra), é proibido no país todo e qualquer jogo de azar, o que inclui bingos, cassinos e jogatinas do gênero. Evidentemente, a norma assinada há quase 80 anos levou um bom tempo para ser obedecida por completo – mesmo em 2021, diversos bingos funcionavam clandestinamente. Mas no caso de empresas, a fiscalização tende a ser mais poderosa.

Não neste caso: nomes como os citados no início deste texto não são, de fato, “empresas brasileiras” – nenhum deles têm sede aqui, ou CNPJ aberto, ou mesmo uma direção nacionalizada. E é aí que reside o contorno que beneficia essas empresas: o Decreto-Lei 13.756/2018, assinado pelo presidente Michel Temer, criou uma nova modalidade de apostas a fim de ampliar o entendimento da categoria dentro da lei.

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“As empresas que operam sítios que trabalham apostas em ambiente online estão sediadas em países cuja operação é tida como legal. Neste sentido, do ponto de vista jurídico, a legislação de regência, ainda que os resvalos ocorram no âmbito de outro ordenamento, é a do país-sede”, diz Fernando Fabiani Capano, sócio da Capano Passafaro Advogados Associados.

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A plataforma Odds Shark analisa probabilidades em apostas esportivas tradicionais, calculando ganhos e perdas – e é uma das preferidas de apostadores profissionais. Imagem: Odds Shark/Captura

Por essa brecha, a canadense Bodog ou as britânicas SportingBet e Bet365 conseguem trabalhar aqui. “Temos um novo panorama normativo no Brasil a partir da lei 13756/18 que, pretendendo regrar distribuição de valores oriundos de atividades lotéricas para o fundos de custeio de políticas de segurança pública, acabou por abrir uma brecha (que ainda pende de maior regulação) para o funcionamento de tais atividades no âmbito brasileiro”, diz Capano.

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Segundo o advogado, dada a natureza de proximidade do brasileiro com os esportes – aliada ao crescimento da adoção de outras modalidades que não o nosso futebol tradicional -, o potencial deste mercado é consideravelmente alto para o nosso público. Ele ainda acredita que, tão logo, as iniciativas que ambicionam reverter o decreto-lei do ex-presidente Dutra possam render frutos.

“O potencial econômico é absolutamente robusto”, ele comenta. “Creio que, em razão do enorme potencial econômico e, consequentemente, da capacidade de gerar pagamento de impostos, essa indústria tem, sim, possibilidade política substancial de ser legalizada no Brasil, a curto ou médio prazo”.

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Apostas online agem dentro do “sistema de cota fixa

O decreto assinado pelo ex-presidente Temer tem um nome específico para esse tipo de atividade: “cota fixa”. É um formato definido pelo nosso governo como “uma loteria em que o apostador tenta prever o resultado de eventos reais esportivos, como placar, número de cartões, quem fará o primeiro gol, etc., em jogos de futebol, mas não restrito exclusivamente a este esporte”.

Em outras palavras: antes mesmo de apostar, você já tem uma boa ideia do quanto poderá ganhar caso vença, ao contrário das loterias, onde o montante pago aos vencedores é definido pelo volume de apostas que ela recebe e, portanto, imprevisível até que o resultado seja divulgado.

Para Arthur Igreja, especialista em tendências da tecnologia e professor convidado da Fundação Getúlio Vargas (FGV), essa percepção só fez aumentar o potencial de mercado do Brasil: “dados de 2018 indicam que esse mercado legalizado faturou em torno de R$ 7 bilhões e, de lá pra cá, esse montante só cresceu em razão do sistema de aposta por cota fixa. O potencial é gigantesco, na casa de dezenas de bilhões de reais, com toda certeza”.

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Empresas como a SportingBet já investem em talentos locais para gerar identificação com a marca, como o jogador Marcelo (esq.) e o lutador de MMA Fabrício Werdum (dir.). Imagem: SportingBet/Divulgação

Igreja argumenta que o arcabouço jurídico desse assunto é “cheio de contradições” e “pretensos defensores da pureza”, sinalizando que não vê razão pelo fechamento das autoridades para este setor: “como é que temos a Mega da Virada e não podemos ter sistema de jogos no Brasil?”, questiona.

“Sendo assim, [o entendimento é o de que] pode enquanto for do governo. Por que não tem liberação de cassino assim como o Brasil teve no passado? A partir disso, temos os discursos mais convenientes e com uma grande vontade de proteger o indivíduo, mas cheio de interesses escusos políticos e pessoais por trás disso tudo”, diz o especialista. “Na minha visão, é um tema fundamentalmente de fundo político, no sentido mais estreito da palavra. É uma questão que depende de politicagem”.

Arthur Igreja ressalta que abrir o mercado para essa atividade pode também ser convidativo aos problemas enfrentados por ela em outros países: em Las Vegas, nos EUA, por exemplo, é comum vermos idosos que gastam toda a sua pensão em roletas, e o próprio Igreja faz uma comparação ao mercado dos “day traders”, que levantou uma enorme discussão no país por causar até suicídios.

Entretanto, nada disso deve ser impeditivo, uma vez que tais problemas não dependem da atuação das empresas ou da letra da lei: “Os problemas são de ordem familiar, de orçamento, da não compreensão de tudo o que está acontecendo. Saber lidar com o risco é algo muito complexo. O lado negativo pode ser de vício, perda patrimonial, transtornos psicológicos, familiares e no trabalho”.

wanna: apostas online
O Wanna, app de apostas casuais da empresa homônima, desembarcou no Brasil recentemente, apostando no mercado aquecido de apostas online. Imagem: Olhar Digital/Captura

Em entrevista recente ao Olhar Digital, Carson Coffman, co-fundador e CEO do Wanna, um aplicativo de apostas casuais, também comentou sobre este lado negativo do setor: “um de nossos parceiros é um psicólogo que se especializou em tratar apostadores esportivos compulsivos, e nós somos uma plataforma social, onde todos enxergam a todos. Em outras palavras, a ‘comunidade ajuda a comunidade’ a evitar que alguém caia em uma espiral de problemas financeiros”.

Nicole Brandão, head de marketing da empresa, ecoa esse discurso, afirmando a política educativa do Wanna: “nossos embaixadores são apostadores profissionais, que se concentram em agir de forma responsável, então advogamos por isso. E é por essa razão que firmamos parcerias para mostrar às pessoas que, embora isso envolva dinheiro real, estamos falando de um aspecto social, de comunidades reunidas ao redor de uma aposta casual”.

Coffman ainda afirma que a sua empresa não atua da mesma forma que as casas tradicionais: “esses caras, o trabalho deles é pegar o seu dinheiro. Em uma casa tradicional, você aposta contra uma máquina. E eventualmente, a máquina ganha: ela tem mais dados que você, ela lê os contextos mais rápido que você – é por isso que dizem que ‘a casa sempre ganha’”.

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Casas de apostas e cassinos podem se beneficiar de uma reversão na lei que proíbe jogos de azar, efetivamente se instalando no Brasil. Imagem: II.studio/Shutterstock

O Wanna, porém, se encontra na mesma situação judicial de todas essas outras empresas: o app é sediado fora do Brasil, atuando (por ora) exclusivamente no nosso mercado, ainda que em campos diferentes. Coffman e Brandão, em nossa entrevista, sinalizaram que querem fazer mais, caso a legislação mude.

Para Arthur Igreja, essa reversão à lei original é algo ambicionado por todos: “é de interesse das empresas regulamentar tudo isso e se estabelecer no Brasil, pois assim se ganha a segurança jurídica da operação de um negócio legalizado, sem ficar a mercê de uma arquitetura em que a empresa se sente numa zona cinzenta. E com isso, é possível intensificar a conquista do público”.

Fonte: Statista (1) (2) / Planalto / Programa de Parcerias de Investimentos