Sempre que chega a época da Copa do Mundo, este acaba sendo o assunto mais falado em todo o globo. Além de acompanhar os emocionantes jogos e o dia a dia dos astros do futebol mundial, todos, mesmo os que não viajam para lá, querem conhecer mais sobre os lugares, os hábitos e a cultura do povo que recebe a maior competição esportiva do planeta. E para nós que admiramos outros tipos de astros, que tal aproveitarmos esse momento da Copa nas Arábias, para conhecer a importância da Astronomia árabe para o desenvolvimento científico da humanidade?

Sabe aquelas três estrelas que compõe o Cinturão de Órion e que aqui no Brasil nós a chamamos de “Três Marias”? Na verdade elas se chamam Alnitak, Alnilam e Mintaka e elas são apenas algumas das muitas estrelas do nosso céu que foram nomeadas pelos árabes. Mas as contribuições deles para a nossa astronomia vão muito além do batismo de estrelas. E pra gente entender isso, teremos que voltar ao Século II, época em que o famoso filósofo grego Ptolomeu, escreveu sua mais famosa obra “Μεγάλη Σύνταξις”, que significa “O Grande Tratado”. 

[ Alnitak, Alnilam e Mintaka, aqui conhecidas como “Três Marias”, são algumas das estrelas nomeadas pelos árabes – Foto: Marcelo Zurita ]

Almagesto

O Grande Tratado, que é mais conhecido como “Almagesto”, é um dos textos científicos mais influentes de todos os tempos. Ele lança a base para o conhecimento astronômico que foi difundido por 14 séculos em toda a Grécia, Europa Ocidental, Império Bizantino e também, no mundo árabe. Era como “Bíblia” astronômica (e também astrológica). 

O Almagesto estava organizado em 13 livros abordando cosmologia de Aristóteles, os movimentos dos astros no céu, a duração do ano solar, o movimento da Lua, as distâncias relativas de Lua e Sol, paralaxe lunar, eclipses do Sol e da Lua, precessão dos equinócios, movimentos dos planetas e ainda continha um catálogo com cerca de mil estrelas e seus brilhos, cores e coordenadas celestes. 

publicidade

No Almagesto, Ptolomeu organizou as estrelas em 48 constelações, muitas delas que foram mantidas até hoje em dia. Em seu modelo cosmológico, a Terra era esférica e estava localizada no centro do Universo, com a Lua, o Sol, os planetas e as estrelas girando ao seu redor. 

Para explicar o movimento retrógrado dos planetas, Ptolomeu acreditava que eles giravam em torno da Terra presos em esferas de cristal. E acreditem, o modelo matemático desenvolvido por ele, era capaz de prever o movimento dos astros com uma precisão aceitável para aquela época. Não à toa, a obra Ptolomeu foi amplamente reproduzida e difundida em grande parte do mundo.

O Almajesto tinha os seus problemas mas nada que não pudesse ser aperfeiçoado pelos astrônomos que sucederam Ptolomeu. Só que, no século IV, o poderoso Império Romano se tornou cristão, e essa mistura perigosa entre religião e poder, acabou mergulhando o ocidente em um longo período de trevas, onde a ciência era reprimida e não se desenvolveu por mais de mil anos. 

A Era das Trevas e o Islãmismo

Nesse período, a biblioteca de Alexandria, o grande repositório do conhecimento humano da época, foi incendiada. Boa parte das cópias do Almagesto foram perdidas naquele incêndio e ao longo dos anos. A astronomia só sobreviveu a esse período graças aos árabes e suas cópias do Almagesto traduzidas para o seu idioma. 

[ Gravura de 1876 mostrando o incêndio da Biblioteca de Alexandria – Gravura: Hermann Göll ]

A observação dos astros sempre fez parte da cultura árabe. Afinal, eles eram nômades e precisavam interpretar o céu noturno para conhecer sua localização e se orientar em seus longos deslocamentos pelo deserto. Mas curiosamente, a sobrevivência da Astronomia na era das trevas só foi possível graças a uma religião: o Islã. 

No Século VII, o islamismo surge na Península Arábica e rapidamente se torna um poderoso império. Em pouco mais de 100 anos, o Império Islâmico já havia se expandido pelo Norte da África, Oriente Médio, parte da Ásia e chegando até a Península Ibérica. Ao mesmo tempo em que o Império Islâmico era militarmente forte e implacável, eles eram cercados de tradições e rituais religiosos. Todo o mulçumano precisa rezar em horas específicas durante o dia e sempre voltados na direção de Meca, a cidade natal de Maomé, fundador do Islã.

[ Mapa da expansão do Império Islâmico. Em marrom, expansão até a morte de Maomé (entre 622 e 632); em laranja, expansão durante o Califado Ortodoxo (entre 632 e 661); e em amarelo, expansão durante o Califado Omíada (entre 661 e 750) – Imagem: wikimedia.org ]

Numa época em que não existiam relógios nem GPS, o conhecimento astronômico era a única forma de saber a hora certa e a direção para onde se deveria rezar. E foi aí que aquele livro, escrito séculos antes por Ptolomeu, conquistou enorme importância em todo o Império Islâmico.

Em sua tradução para o árabe, seu título original, o grande tratado, foi traduzido para “al Majesti”, que significa “o grandíssimo”. Sete séculos depois, quando este livro foi reintroduzido no ocidente, ele foi traduzido de volta, do árabe para o latim, e recebeu o nome pelo qual ele é conhecido até hoje: Almajesto.

Durante a era das trevas, os árabes foram os portadores do conhecimento astronômico desenvolvido por séculos de estudos. Mas eles não se limitaram somente a isso. 

Al-Sufi

Um exemplo é o persa Al-Sufi, que viveu no Século X e foi um dos mais importantes astrônomos da Idade Média. São atribuídas a ele as principais correções no catálogo de estrelas de Ptolomeu. Al-Sufi também nomeou várias estrelas e foi o primeiro a catalogar um objeto nebuloso presente na Constelação de Andrômeda. Era a Galáxia de Andrômeda, percebida por ele a olho nu, há mais de mil anos.

[ Primeiro registro da Galáxia de Andrômeda, representada como um aglomerado de pequenas estrelas e descrito como uma nebulosidade no desenho da Constelação de Andrômeda de Al-Sufi – Imagem: Bodleian Library, Oxford ]

Ulugh Beg

Por todo o Império Islâmico, observatórios astronômicos foram construídos para fornecer dados ainda mais precisos para o Almagesto. Os árabes também aperfeiçoaram o Astrolábio, um instrumento grego que permitia calcular a posição dos astros no céu, algo essencial para a navegação e que permitiu que os árabes criassem rotas comerciais com todo o mundo conhecido.

O maior e mais preciso equipamento astronômico islâmico já construído foi o Observatório de Ulugh Beg, que ficava em Samarcanda, onde hoje é o Uzbequistão. Com mais de 30 metros de altura, o observatório se destinava a medir com precisão a posição do Sol. Neste observatório, o ano solar foi medido em 365 dias, 5 horas, 49 minutos e 15 segundos, apenas 30 segundos a menos que o valor considerado atualmente.

[ Interior das ruínas do Observatório de Ulugh Beg em Samarcanda, Uzbequistão – Fonte: wikimedia.org ]

Al-Tusi

E enquanto mediam os astros de forma cada vez mais precisa, os árabes começaram a perceber que muitas coisas propostas por Ptolomeu não se encaixavam em suas observações. Aí, lá pelo Século 13, o astrônomo Persa Al-Tusi, desenvolveu um modelo cosmológico em que o pupunha que a Terra não era o centro do Universo e sim o Sol. 

E ao que tudo indica, dois séculos depois, as pesquisas de Al-Tusi serviram de base para que Nicolau Copérnico desenvolvesse sua teoria heliocêntrica do Sistema Solar, trabalho que mudou a história da Astronomia. Ou será que deveríamos dizer que os árabes mudaram para sempre a história da Astronomia?

Já assistiu aos novos vídeos no YouTube do Olhar Digital? Inscreva-se no canal!