O mar de estrelas: como a humanidade aprendeu a navegar o céu

Por Marcelo Zurita, editado por Lucas Soares 06/10/2025 19h57
Compartilhe esta matéria
Ícone Whatsapp Ícone Whatsapp Ícone X (Tweeter) Ícone Facebook Ícone Linkedin Ícone Telegram Ícone Email

Se você já teve a oportunidade de olhar para o céu estrelado numa noite sem lua, num local escuro, afastado dos centros urbanos, então você conhece a fascinante sensação de estar mergulhado em um mar de incontáveis estrelas. Para nossos ancestrais, essa visão inspiradora também trazia uma questão prática: como se localizar e aprender com esse imenso palco celeste? A solução encontrada foi engenhosa e, de certa forma, poética: agrupar os pontos de luz de modo a formar figuras familiares. Assim nasceram as constelações, um conjunto de estrelas próximas que transformaram o aparente caos cintilante em narrativas celestes.

Elas foram a forma que a humanidade encontrou de dar sentido ao céu. Os astros salpicados aleatoriamente na noite, ganharam formas e junto a elas, histórias. Mitos que ajudaram os antigos a perpetuar o conhecimento astronômico e criar mapas do céu que orientavam os viajantes e influenciaram a agricultura dos povos ancestrais. Mas afinal, o que são as constelações: ciência ou poesia?

[ Céu estrelado em local escuro – Créditos: Sergei Makurin ]

As constelações nada mais são do que agrupamentos de estrelas que, do nosso ponto de vista, parecem formar figuras — criações da nossa imaginação. A mente humana é hábil em encontrar padrões que nos lembram formas conhecidas. Por isso enxergamos animais nas nuvens, rostos em frutas, vegetais e até mesmo em Marte.  E quando olhamos para as estrelas, nossa mente liga os pontos e enxerga as constelações. 

Vistas aqui da Terra, temos a impressão que as estrelas da mesma constelação estão próximas entre si, mas essa é apenas uma ilusão. Órion, por exemplo, um dos conjuntos mais famosos do céu, tem Bellatrix a apenas, 250 anos-luz de distância, Betelgeuse a cerca de 640 anos-luz e Alnilam a 1250 anos-luz da Terra. Para nós, parecem vizinhas — mas no espaço, estão mais afastados que alguns familiares depois das últimas eleições.

[ Distâncias das estrelas da Constelação de Órion – Créditos: Marcelo Zurita ]

Mesmo assim, desde os primórdios, os humanos encontraram nessas ilusões um poderoso aliado. Povos antigos usavam constelações para marcar as estações do ano, prever períodos de plantio e colheita, se orientar em viagens e, claro, contar histórias. Para os gregos, o céu era um palco mitológico: Órion, o caçador; Andrômeda, a princesa; Perseu, o herói. 

Já os egípcios associavam estrelas e constelações aos ciclos do rio Nilo, fundamentais para a agricultura. Do outro lado do mundo, os chineses viam o céu dividido em centenas de pequenos asterismos, cada qual ligado ao imperador, à corte e à ordem terrena. E nas Américas, povos indígenas identificaram figuras mais próximas da vida cotidiana: animais, ferramentas, caçadas — muitas vezes formadas não apenas pelas estrelas, mas também pelas manchas escuras e luminosas da Via Láctea. Assim, cada cultura projetou no céu seus próprios medos, sonhos e esperanças.

Para a cultura ocidental, o céu do hemisfério norte foi povoado por heróis, monstros e deuses da mitologia clássica. Mais tarde, durante as grandes navegações, astrônomos europeus se depararam com estrelas invisíveis do norte e batizaram novas constelações com um olhar mais “moderno”. Surgiram no céu um Telescópio, uma Régua, uma Bússola, um Barco à Vela inteiro, um Tucano, um Peixe Dourado… E claro, o Cruzeiro do Sul, que se tornou não apenas uma referência na navegação, mas um símbolo da própria identidade dos países do hemisfério sul. O contraste é curioso: enquanto os antigos viam heróis e mitos, para os modernos eram os instrumentos de ciência e natureza que orientavam nosso futuro.

[ Constelação da Ema na cultura tupi, delimitada pelas estrelas e pelas manchas escuras e luminosas da Via Láctea – Créditos: Fefo Bouvier, Alfonso Rosso ]

Entre as constelações mais famosas, algumas brilham em destaque em qualquer céu. Órion, o caçador, é visível em ambos os hemisférios e facilmente reconhecível por seu cinturão de três estrelas alinhadas, Alnilan, Alnitak e Mintaka, que nós preferimos chamar de Três Marias. A Ursa Maior, no norte, é usada há séculos para encontrar a Estrela Polar, referência essencial para viajantes e navegadores. Escorpião, com sua estrela vermelha Antares como coração pulsante, é um espetáculo das noites de inverno no Brasil. E o já citado Cruzeiro do Sul é o guia mais confiável do nosso hemisfério: prolongando seu eixo maior, chega-se ao Polo Sul celeste.

Antigamente, cada cultura via o céu à sua maneira e tinha suas próprias constelações. Como um Forró da Brucelose com a mesma melodia do Guns N’ Roses. Mas essa liberdade poética  trouxe um problema prático: a falta de padronização no céu. Imagine a frustração de um astrônomo informado de uma supernova observada na constelação de Noctua, só que ele não faz ideia de onde fica Noctua. Até o início do século XX, não havia consenso sobre as constelações e isso limitava a integração entre astrônomos de diferentes culturas. Foi somente em 1922 que a União Astronômica Internacional (UAI) entrou em cena e colocou ordem na casa. 

Ficou decidido: seriam oficialmente 88 constelações, cobrindo todo o céu. Aproveitando a herança das tradições antigas, como as constelações egípcias e greco-romanas imortalizadas no Almagesto de Ptolomeu, e somando as modernas introduzidas por Bayer e Lacaille durante as grandes navegações.

[ Mapa das constelações do céu padronizadas pela IAU – Fonte: Go Astronomy ]

Além das figuras e mitos, cada constelação passou a ter fronteiras bem definidas. O firmamento se tornou um grande mapa oficial, dividido em 88 territórios celestes — ainda poético, mas agora com endereços certos. Desde então, quando dizemos que uma estrela ou galáxia está em determinada constelação, estamos nos referindo a essa divisão oficial.

As constelações celestes são as estruturas imaginárias que unem a ciência à cultura. Aproximam os astros do céu de nós, meros mortais aqui na Terra, e nos mostram que o Universo pode ser, tanto ciência, quanto poesia. Hoje sabemos que as estrelas que compõem uma mesma figura estão a distâncias imensas umas das outras e não compartilham ligação física. Mesmo assim, continuam unidas por algo mais forte que a gravidade: a nossa imaginação. As constelações são um espelho da humanidade no céu. Cada cultura deixou nelas um pedaço da sua criatividade, de seus medos e de suas esperanças.

Enquanto olharmos para as estrelas e tivermos a capacidade de traçar linhas invisíveis, identificando figuras do folclore ou do nosso dia a dia, nunca nos perderemos no imenso palco estelar do Universo. Afinal, a invenção das constelações, nos ajudou não apenas a localizar os astros, mas também a encontrar o nosso próprio lugar no Cosmos e guiar nossa jornada para as estrelas.

Marcelo Zurita
Colunista

Pres. Associação Paraibana de Astronomia; membro da Sociedade Astronômica Brasileira; diretor técnico da Rede Brasileira de Observação de Meteoros – e coordenador regional do Asteroid Day Brasil

Lucas Soares
Editor(a)

Lucas Soares é jornalista formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e atualmente é editor de ciência e espaço do Olhar Digital.