Inferno escuro. Esse foi o apelido dado por cientistas a um cenário no qual partículas de matéria escura se acumulavam no centro da Terra e liberavam calor suficiente para derreter parte do núcleo. A hipótese faz parte de uma pesquisa publicada nesta semana. Ela propõe usar o próprio planeta como um detector natural dessas partículas — cuja existência ainda é um dos maiores mistérios da física moderna.
O estudo mostra, porém, que o fato de o núcleo da Terra permanecer sólido funciona como uma pista poderosa sobre a natureza da matéria escura. Essa evidência geofísica permite descartar modelos que previam uma liberação de energia maior do que o planeta poderia suportar. Assim, impõe um limite muito mais rigoroso ao quanto essas partículas podem aquecer o interior terrestre.
A Terra como detector de matéria escura
A pesquisa parte de uma ideia ousada: usar o núcleo da Terra como um laboratório natural para investigar a matéria escura. O componente invisível representa mais de 80% do Universo, mas sua natureza ainda é desconhecida.
Os cientistas propõem que, se essas partículas interagirem minimamente com a matéria comum, parte delas seria capturada pela gravidade do planeta e se acumularia em seu interior.
Com o tempo, essas partículas poderiam se aniquilar, o que liberaria energia na forma de calor. Se esse processo fosse intenso demais, teria derretido o núcleo sólido da Terra — algo que claramente não ocorreu.
É justamente a ausência desse calor excessivo que permite ao novo estudo estabelecer os limites mais precisos já calculados sobre o impacto da matéria escura no planeta. A pesquisa foi publicada no periódico Physical Review D na quinta-feira (09).
O ‘inferno escuro’: quando a física teórica encontra o centro da Terra
A hipótese de aquecimento subterrâneo parte de um princípio básico da física de partículas: se a matéria escura existir, ela pode se aniquilar ao encontrar sua antipartícula, liberando energia no processo.
Parte dessa energia seria absorvida pelo interior da Terra, o que elevaria sua temperatura. Quanto maior a densidade de partículas acumuladas no centro, mais calor seria produzido.

Segundo o estudo, para partículas com massa acima de cerca de dez gigaelétron-volts (GeV), praticamente todo o calor gerado ficaria preso no núcleo interno, sem escapar para as camadas mais externas.
Esse efeito em cascata criaria um aquecimento localizado capaz de derreter uma porção substancial do núcleo. O fenômeno, batizado de “inferno escuro”, serviria como sinal indireto da presença de matéria escura – se fosse observado.
No entanto, as medições sísmicas indicam o contrário. O núcleo da Terra permanece sólido e estável. Essa constatação simples leva a uma conclusão importante: se o planeta não derreteu, é porque a matéria escura, caso exista, não libera tanta energia quanto preveem alguns modelos teóricos.
O núcleo terrestre como limite físico para o calor invisível
O núcleo da Terra funciona, na prática, como um termômetro cósmico. Sua solidez impõe uma restrição natural ao calor máximo que pode existir dentro do planeta.
Se a injeção de energia causada por partículas de matéria escura ultrapassasse esse limite, o núcleo se tornaria líquido – algo que contradiz décadas de medições sísmicas.
Com base nesse raciocínio, os pesquisadores calcularam um novo teto de energia que a matéria escura poderia injetar sem alterar a estrutura do núcleo: 3,4 terawatts (TW).
Esse número é muito inferior aos limites usados em estudos anteriores, que variavam de 20 a 44 TW e consideravam apenas o calor na superfície.

O novo método, ao analisar o interior do planeta, é de seis a 13 vezes mais sensível. E impõe uma restrição bem mais rigorosa aos modelos de matéria escura.
O simples fato de o núcleo interno continuar sólido já descarta diversas hipóteses sobre o comportamento dessas partículas. É uma forma de transformar a Terra num detector natural, onde o silêncio térmico fala mais alto que qualquer sinal direto.
O método: simulações, equações e um modelo chamado DarkInferno
Para chegar a essas conclusões, os cientistas criaram um modelo computacional próprio, batizado de DarkInferno. O software, desenvolvido em Python, resolve a equação do calor, que descreve como a energia térmica se movimenta no interior de planetas rochosos.
Com ele, é possível simular diferentes cenários de densidade, temperatura e condutividade do núcleo. Assim, dá para avaliar quanto calor a matéria escura poderia gerar sem derretê-lo.
O modelo considera parâmetros geofísicos obtidos de medições reais: uma condutividade térmica de 100 W/m/K e uma temperatura inicial no limite do núcleo de cerca de 5.500 kelvin.

A partir desses valores, os cálculos indicam que o equilíbrio térmico do núcleo seria atingido em aproximadamente um bilhão de anos. É tempo suficiente para a energia da matéria escura se redistribuir e estabilizar sem causar colapsos internos.
O DarkInferno foi criado para ser reproduzível e aberto a outros pesquisadores. Além de simular o interior da Terra, o modelo pode ser aplicado a outros planetas e até exoplanetas. Isso abre caminho para novas formas de investigar a presença de matéria escura fora do laboratório.
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Novos limites e uma sensibilidade sem precedentes
O principal avanço do estudo está na precisão dos limites obtidos. Ao usar a estrutura interna da Terra como referência, os cientistas reduziram em uma ordem de magnitude o teto de energia que a matéria escura poderia liberar.
O novo valor de 3,4 TW não é apenas mais restritivo. Ele redefine o espaço de parâmetros possível para as partículas de matéria escura conhecidas como WIMPs, as candidatas mais estudadas até hoje.
Esse resultado também tem impacto direto em experimentos de detecção realizados em laboratórios subterrâneos. Essas pesquisas dependem de estimativas sobre a taxa de colisão entre a matéria escura e os átomos comuns.
O novo estudo mostra que, se essas interações fossem mais fortes do que se supõe, o núcleo da Terra já teria derretido. Por isso, os limites agora estabelecidos funcionam como um freio natural para teorias mais energéticas. E ajudam a refinar o que é plausível dentro da física de partículas.
Em resumo, o que era hipótese vira limite mensurável: o núcleo sólido da Terra é a prova geológica de que a matéria escura, se existe, é bem mais discreta do que se imaginava.