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Denúncias internas contra grandes empresas de tecnologia têm provocado um efeito colateral pouco discutido: o impacto profundo e duradouro na vida profissional de quem decide falar. Relatos recentes de ex-funcionários da Meta e de outras big techs mostram que expor práticas consideradas prejudiciais ao público pode significar isolamento, dificuldades para conseguir emprego e, em alguns casos, a saída definitiva do setor de tecnologia. As informações são do The Washington Post.
Um dos exemplos mais emblemáticos é o de Yaël Eisenstat, ex-chefe de integridade eleitoral do Facebook. Em 2019, ela publicou um artigo acusando a empresa — hoje Meta — de lucrar com propaganda política enganosa por meio de ferramentas avançadas de segmentação de anúncios. A companhia, por sua vez, afirmou que suas políticas buscavam evitar censura ao discurso político. Após a denúncia, Eisenstat relata que sua carreira entrou em declínio: colegas passaram a falar sobre ela, entrevistas de emprego não avançavam e convites promissores eram cancelados sem explicação.
Ela afirma que chegou a se sentir “na lista negra” do Vale do Silício, embora não acredite que o CEO da Meta, Mark Zuckerberg, tenha interferido diretamente. Durante quatro anos, viveu de trabalhos de consultoria até conseguir um cargo com nível de responsabilidade semelhante ao que tinha antes.

Denúncias contra a Meta ampliam o debate sobre as big techs
Eisenstat faz parte de um grupo crescente de profissionais que acusam as big techs de comprometer a segurança dos usuários e causar danos sociais. Esse movimento contribuiu para uma série de reportagens negativas, audiências no Congresso dos Estados Unidos com executivos do setor e propostas de leis que buscam restringir ou regular o uso de redes sociais, especialmente por jovens.
Somente neste ano, ao menos nove atuais ou ex-funcionários da Meta vieram a público com acusações diversas. Entre eles está Sarah Wynn-Williams, autora de um livro que se tornou best-seller, no qual afirma que líderes da empresa buscaram se aproximar do governo chinês, toleraram assédio sexual e ignoraram riscos das plataformas para os usuários. A Meta rebateu, dizendo que as conversas sobre a China não eram segredo, que denúncias de assédio foram consideradas infundadas após investigação interna e que a ex-funcionária foi demitida por baixo desempenho.
Apesar disso, Wynn-Williams enfrenta uma disputa jurídica pesada. A Meta venceu uma arbitragem que a impede de promover o livro ou fazer comentários considerados críticos à empresa, sob pena de multas. Segundo seu advogado, a companhia busca indenizações que podem chegar a dezenas de milhões de dólares. Parlamentares britânicos afirmaram que ela corre risco de falência, enquanto a Meta diz que atividades como cooperação com reguladores e depoimentos sob juramento continuam protegidas por lei.

Custos pessoais e profissionais de desafiar as gigantes da tecnologia
Especialistas e organizações de apoio a denunciantes afirmam que as consequências relatadas não são exceção. Segundo defensores da causa, quem decide expor problemas internos costuma enfrentar:
- isolamento dentro do setor de tecnologia;
- dificuldade para conseguir novos cargos compatíveis com a experiência;
- perda significativa de renda;
- necessidade de mudar de área ou carreira;
- processos judiciais longos e desgastantes.
Arturo Béjar, ex-diretor de engenharia e consultor da Meta, relatou ter alertado Zuckerberg sobre dados que mostravam assédio frequente a adolescentes no Instagram, incluindo a própria filha e amigas. Sem resposta, decidiu procurar a imprensa e o Congresso. Após tornar públicas suas preocupações, disse que não conseguiu novos clientes de consultoria e passou a viver de economias acumuladas antes da denúncia. Ainda assim, afirma não se arrepender.
Casos semelhantes se repetem fora da Meta. Anika Collier Navaroli, ex-funcionária do Twitter, relatou ter sido afastada de colegas após testemunhar no Congresso sobre decisões da empresa antes dos ataques ao Capitólio em 2021. Hoje, ela atua como professora universitária, com remuneração menor, mas diz encontrar significado no novo papel.

Há exceções. Frances Haugen, que vazou documentos internos do Facebook em 2021, afirmou que tinha uma reserva financeira que reduziu os riscos. Desde então, ganhou projeção pública, escreveu um livro e fundou uma organização de políticas tecnológicas.
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Diante desse cenário, governos começam a reagir. Leis recentes na Califórnia e projetos em tramitação no Congresso dos EUA ampliam proteções para denunciantes, especialmente no setor de inteligência artificial. Organizações independentes também surgiram para oferecer apoio jurídico e emocional.
Ainda assim, o consenso entre muitos desses profissionais é que denunciar práticas das big techs, incluindo a Meta, continua sendo uma decisão com consequências profundas. Para vários deles, porém, o custo pessoal não supera a convicção de que tornar os problemas públicos era necessário.