Nesta semana, o mundo acompanhou o sucesso da Nova Zelândia na contenção do coronavírus, e agora passou a retomar a vida normal, sem qualquer restrição contra circulação interna e aglomerações. Não há nenhum caso ativo de Covid-19 em território neozelandês, então não há preocupação das autoridades com transmissão entre seus cidadãos.

O governo local atribui uma boa parte desse sucesso aos esforços de rastreamento de contatos da população. Na prática, quando um paciente recebia um diagnóstico positivo, os agentes de saúde passavam a ir atrás de todo o seu histórico para encontrar outras pessoas que podem ter sido contaminadas. É um processo bastante analógico, que pode ser amplificado pela tecnologia, mas até hoje, mais de três meses após o primeiro caso confirmado de Covid-19 no Brasil, o Ministério da Saúde sequer discute a possibilidade de desenvolver um aplicativo para essa função.

Esse processo permitiria que elas possam se isolar ou se testar o mais rápido possível, permitindo um diagnóstico precoce e diminuindo os riscos de propagação na fase pré-sintomática da doença. Não à toa, o procedimento é considerado chave para minimizar os impactos da Covid-19.

O rastreamento de contatos analógico funciona de forma simples e direta. A partir dos relatos do paciente e pelo que se sabe dele, os especialistas tentam refazer seus passos desde o início dos sintomas, e no caso da Covid-19, alguns dias antes da manifestação desses sintomas, já que se sabe que é possível transmitir o vírus nesta fase.

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Com esse mapeamento dos sintomas, é possível identificar ao menos algumas pessoas com quem a convivência é mais frequente: familiares, amigos próximos, colegas de trabalho. Também é possível rastrear se ele esteve no banco, por exemplo, em algum supermercado, se ele andou de ônibus ou metrô. Obviamente, rastrear todas as pessoas nesses espaços de uso público muito movimentados é impossível, mas pelo menos os funcionários que podem ter entrado em contato com alguém infectado podem ser alertados.

Esse processo funciona melhor em uma etapa prévia da pandemia, quando não há o que se chama de transmissão comunitária, quando o vírus já circula entre desconhecidos que não tenham um contato próximo, tornando a identificação da origem de contágio virtualmente impossível. Ainda assim, como aponta ao Olhar Digital o médico sanitarista Gilberto Berguio Martin, professor de medicina da PUC-PR, esse trabalho não pode ser abandonado. O processo ainda permite detectar pessoas próximas, que podem ser devidamente isoladas, minimizando o alcance do coronavírus.

O Brasil, por mais que não pareça diante dos altíssimos números da Covid-19 até o momento, está equipado para esse trabalho. Como aponta Martin, o SUS tem a capilaridade necessária, presente até mesmo no menor dos municípios brasileiros, para fazer esse acompanhamento. No entanto, ele perde um pouco da eficácia quanto mais denso é o centro urbano, justamente pela dificuldade em acompanhar essa movimentação e detectar contatos potenciais em áreas com muitas pessoas.

Como funciona um app de rastreamento?

Neste cenário de grandes centros urbanos, o processo manual de pesquisar e contatar diretamente por telefone ou pessoalmente perde um pouco da eficácia. Justamente por isso, governos pelo mundo têm falado em adotar aplicativos para automatizar esse processo.

A abordagem não é unânime, e existem pontos importantes a serem considerados, mas certamente merece discussão. Um aplicativo pode permitir rastrear melhor as pessoas que se aproximam de um paciente de Covid-19 e notificá-los com antecedência, com pouca ou nenhuma intervenção humana.

A iniciativa do Google e da Apple se destaca. As duas empresas desenvolvem os sistemas operacionais usados em praticamente todos os smartphones em uso no mundo, tornando suas medidas bastante abrangentes. As companhias desenvolveram em conjunto APIs que permitem autoridades de saúde selecionadas (e não qualquer empresa) criarem aplicativos que utilizem o Bluetooth do smartphone para detectar outros aparelhos próximos, que também emitem sinais de rádio por Bluetooth. Por meio de um sistema de chaves criptografadas e aleatórias, esses dados são guardados no smartphone de forma teoricamente segura. Quando alguém é diagnosticado com Covid-19, ele pode acessar o aplicativo e enviar uma notificação a todos os contatos registrados anonimamente em seu celular para que se isolem ou se testem.

Apple e Google determinam algumas regras para que essa ferramenta possa ser usada pelos apps. Não é permitido usar informações de GPS para rastrear a localização dos usuários, as informações não podem ser gravadas em nuvem e devem ficar restritas aos smartphones e o sistema será desabilitado assim que a pandemia estiver sob controle. Também não são permitidos anúncios direcionados 

Há países que manifestaram interesse em seguir esse caminho. A Itália já lançou o Immuni, que usa a tecnologia para rastreamento dos contatos por Bluetooth, seguindo todas as restrições impostas por Apple e Google, utilizando a tecnologia dessas empresas.

O Reino Unido, por sua vez, optou por divergir das empresas e propõe um app sem depender da tecnologia de Apple e Google, o que também permite evitar as restrições de privacidade impostas pelas empresas. O mesmo acontece com França e Austrália: rastreamento de contatos via Bluetooth, mas sem ceder às restrições impostas pelas empresas.

Na Nova Zelândia, que virou o grande caso de sucesso contra a Covid-19, a maior parte do trabalho foi manual, mas também há um app para facilitar essa tarefa, ainda que a abordagem seja completamente diferente. O aplicativo permite escanear QR Codes em estabelecimentos públicos, que registram os locais visitados pelo paciente diagnosticado com Covid-19 em uma espécie de diário. Essas informações podem ser repassadas aos agentes de saúde para realização do trabalho de checagem; o governo também promete um sistema de notificação automática para outras pessoas que visitaram o mesmo local em determinado horário, mas o recurso ainda não ficou pronto.

Ao Olhar Digital, o Ministério da Saúde confirma não ter qualquer informação relacionada ao desenvolvimento de um aplicativo do tipo. O Google também confirma ao OD que as tecnologias para criação de apps que utilizem o Bluetooth do celular foram cedidas ao ministério, que parece ter optado por não fazer nada com elas até o momento. Para Martin, isso reflete a posição do governo federal em relação à pandemia, de “fingir que o problema não existe”.

Desafios técnicos

Esses apps são todos de uso voluntário, cuja eficácia depende totalmente da adoção da população. Isso por si só é um problema para que eles sejam realmente capazes de cumprir seus papéis, especialmente enquanto há tanto negacionismo relacionado ao tema no mundo inteiro.

Mas também há algumas barreiras técnicas. O Bluetooth tem um alcance máximo muito maior do que os 2 metros de segurança recomendados pelos especialistas em saúde, e não é porque uma pessoa contaminada se aproximou por três segundos de alguém que ela foi capaz de transmitir o vírus, como explica Martin ao Olhar Digital. Se os usuários desses apps começarem a receber muitos avisos falsos, eles passarão a ser ignorados, tornando-os improdutivos.

Por isso, o sistema de Apple e Google implementou alguns limites. Ainda que o alcance do Bluetooth supere os 2 metros, ainda é possível determinar a força do sinal para entender se algum infectado realmente este perto do usuário. Sinais mais fortes significam alta proximidade, sinais mais fracos significam maior distância. Além disso, a ferramenta também é capaz de determinar o tempo de exposição, e vai ignorar contatos de poucos segundos, determinando como mínimo um período de 5 minutos.

Existem também questionamentos sobre a eficácia do Bluetooth nesse tipo de abordagem, já que a tecnologia não é a mais confiável para transmissão de dados por ondas de rádio. Não é incomum tentar parear um fone de ouvido com seu celular e simplesmente não conseguir encontrá-lo, por exemplo.

Para quem opta por evitar as tecnologias de Apple e Google e desenvolver apps independentes, as complicações são ainda maiores. Isso porque os sistemas operacionais são feitos para limitar a utilização do Bluetooth por aplicativos a fim de evitar abusos. O iPhone age para barrar a emissão de sinais do tipo com a tela bloqueada ou quando o app não está aberto, limitando sua eficácia. Enquanto isso, o Android permite a emissão de sinais apenas por alguns minutos após o fechamento de um aplicativo. Apenas os apps de autoridades de saúde que receberam a permissão das empresas podem driblar essas restrições, e por isso é tão importante trabalhar com as ferramentas fornecidas por elas.

Limites legais

Se o Ministério da Saúde quisesse lançar um aplicativo do tipo, o que não parece ser o caso até o momento, deveria respeitar o princípio fundamental da voluntariedade para que o sistema seja legal, como explica ao Olhar Digital o advogado Guilherme Cremonesi.

Os usuários precisam instalar os apps por vontade própria em seus smartphones, e a transmissão da informação de contágio no aplicativo também precisa ser feita pela vontade do próprio usuário. Não há violação de privacidade quando o próprio indivíduo renuncia a seu anonimato por vontade própria.

Existem abordagens ilícitas para monitoramento durante a pandemia. Uma delas foi vista na cidade de Cordeirópolis, no interior de São Paulo, onde a Guarda Civil Municipal começou a monitorar as placas de carros de pessoas diagnosticadas sem qualquer autorização. Cremonesi aponta, porém, que a intimidade não é um direito absoluto; existem situações em que ele pode ser flexibilizado, mas elas devem seguir o processo legal. A imposição de um aplicativo de rastreamento não é uma dessas situações, a não ser que seja votada alguma regulamentação específica sobre o assunto.

Ainda sobre as questões legais, com a chegada da Lei Geral de Proteção de Dados, há também novas implicações para um aplicativo desse tipo. O sistema deve trazer com clareza em seus termos de uso a finalidade do uso dos dados dos usuários, que devem dar autorização expressa para utilização das informações.

Informações tão sensíveis de saúde não podem ser vendidos ou repassados para terceiros sem que o usuário tenha total ciência dessas atividades, complementa Cremonesi. O governo também assumiria a responsabilidade total sobre a guarda dos dados e de um possível vazamento.