Ao menos cinco pacientes com Covid-19 entraram na fila de transplante de fígado em São Paulo depois de usar o kit Covid. O conjunto de remédios inclui drogas como hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e anticoagulantes — elas não têm eficácia comprovada contra a doença causada pelo novo coronavírus. Três desses doentes morreram por hepatite medicamentosa.

Quatro dos cinco contaminados foram atendidos no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-USP), mas dois deles morreram antes da cirurgia. O quinto paciente foi tratado no Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (HC-Unicamp). As biópsias de fígado das cinco vítimas comprovam que as complicações no órgão foram causadas por medicamentos e não pelo novo coronavírus.

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Luiz Carneiro D’Albuquerque, chefe de transplantes de órgãos abdominais do HC-USP e professor da universidade, diz que os exames no fígado mostram lesões compatíveis com hepatite medicamentosa. “Vemos que esses remédios destruíram os dutos biliares, que é por onde a bile passa para ser eliminada no intestino.”

Kit de remédios contra a Covid-19

De acordo com Carmen Valente Barbas, pneumologista do HC-USP e do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, muitos de seus pacientes atuais afirmam que tomaram medicamentos do kit Covid. A maior ressalva dos médicos quanto a essas drogas são os efeitos colaterais, principalmente entre aqueles que desenvolvem sintomas graves da Covid-19 e já estão com os órgãos comprometidos.

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Além da hepatite medicamentosa, os profissionais de saúde começaram a observar outros danos no organismo de pacientes que usaram o kit Covid, como hemorragias, insuficiência renal e arritmias. “Esses remédios não ajudam, não impedem a intubação e trazem efeitos colaterais, como hepatite, falha renal, infecções bacterianas, diarreia, gastrite… E a interação entre eles pode ser perigosa”, destaca Carmen.

O uso do kit Covid continua sendo defendido pelo presidente Jair Bolsonaro e recomendado pelo ministério da Saúde. Com isso, a venda de ivermectina em 2020 aumentou 557% em comparação com 2019. A fabricante da fórmula, a Merck Sharp & Dohme (MSD), diz que não há evidências de que ela seja eficaz contra a Covid-19.

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"Kit covid" pode causar insuficiência renal e estaria relacionado a maior risco de morte no Brasil
Remédios do kit Covid podem aumentar complicações entre pacientes com Covid-19. Créditos: Sergio Yoneda (iStock)

C., filha de um paciente que morreu de Covid-19, conta que foi diagnosticada com a doença no início de dezembro. Seu pai, com quem dividia a casa, decidiu então fazer o teste. Mesmo sem sintomas nem resultado positivo, ele já saiu de uma unidade da Prevent Senior com kit Covid. C. relata que ela e sua mãe também receberam as drogas, mas só as usaram por um dia, enquanto seu pai as tomou por cinco dias. “Ele disse que queria porque era o remédio do Bolsonaro.”

Em 13 de dezembro, o pai de C. apresentou sintomas e fez um novo teste, que indicou a infecção. O hospital deu a ele mais um kit Covid, mas ele não apresentou melhora e foi internado três dias depois. “Esse kit dá uma falsa sensação de segurança. A pessoa vê os outros falando que deu certo e acha que vai funcionar para ela também, mas não tem nada provado que esses medicamentos funcionam”, diz C. O pai dela teve duas paradas cardíacas, foi intubado um dia depois da internação e morreu três dias depois.

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A Prevent Senior afirma que “a adoção de qualquer linha terapêutica é de responsabilidade dos médicos”. A empresa destaca, ainda, que não houve queixa do paciente sobre qualquer alteração ou efeito colateral dos medicamentos.

Além disso, a companhia diz que monitora resultados clínicos de mais de 130 mil pessoas testadas para Covid-19 nos últimos 12 meses. “Os dados trazem evidências robustas de que o conjunto de tratamentos com diversas medicações evita o agravamento da doença por reduzir a inflamação provocada pelo vírus”, diz. A empresa destaca, ainda, que os dados estão disponíveis para “qualquer instituição de pesquisa que queira examiná-los”.

Problemas do kit Covid

Ederlon Rezende, coordenador da unidade de tratamento intensivo (UTI) do Hospital do Servidor Público do Estado, em São Paulo, enfrenta dificuldades com pacientes que precisaram ser sedados e acordaram com confusão mental maior que o normal. A condição é acentuada pelo uso excessivo de ivermectina antes da internação.

Segundo Rezende, ao acordar da intubação, o paciente pode apresentar delírio. Isso é muito frequente em doentes com Covid-19, porque o vírus atravessa a barreira hematocefálica e causa inflamação no cérebro ao afetar sua região frontal. “A ivermectina é uma droga que penetra no cérebro quando ele está inflamado. Ela deprime ainda mais o órgão e piora a qualidade do despertar de um paciente intubado”, explica.

A hidroxicloroquina, outro remédio do kit Covid, também pode ser uma inimiga da recuperação, uma vez que pode causar arritmia cardíaca. Em pacientes com sintomas graves de Covid-19, a doença afeta o coração, causa inflamação do músculo cardíaco e trombose em vasos e tecidos — o que fica ainda pior com o uso do medicamento.

Um dos principais problemas do kit Covid é a falsa sensação de segurança, que faz que as pessoas parem de se prevenir corretamente. Créditos: marcoatoresin/Shutterstock

Uma pesquisa recente da Fiocruz Amazônia com a Universidade Federal do Amazonas (Ufam) em Manaus verificou que as taxas de infecção por Covid-19 foram maiores em pacientes que afirmam ter tomado medicamentos preventivos. Segundo os pesquisadores, isso ocorreu porque quem estava tomando os remédios do kit acreditava que não precisava se prevenir.

Esse é, inclusive, um dos principais problemas encontrados pelas UTIs: os doentes que chegam lá, acreditam estar protegidos pelos medicamentos e procuram ajuda tarde demais. “Alguns prefeitos distribuíram kit Covid. Os mais crédulos achavam que tomando aquilo não pegariam Covid-19 e demoraram para procurar assistência quando ficaram doentes”, diz Carlos Carvalho, diretor da Divisão de Pneumologia do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas (Incor-HC), em São Paulo.

Além disso, ele avalia que a falta de organização central e as informações desconexas sobre medicação sem eficácia contribuíram para a letalidade maior na nossa população. “Não vou dizer que representa 1% ou 99% [das mortes], mas contribuiu.”

Para muitos especialistas, a defesa e a utilização do kit Covid desvia os recursos financeiros que poderiam ser usados na compra de vacinas, no financiamento de pesquisas e na adoção de tratamentos eficazes. Um levantamento da BBC News Brasil aponta que os gastos do governo com cloroquina, hidroxicloroquina, Tamiflu, ivermectina, azitromicina e nitazoxanida chegaram a cerca de R$ 90 milhões até janeiro.

Via: Estadão [1][2], BBC