Relatório anual emitido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que os antibióticos que estão atualmente em desenvolvimento em todo o mundo não são capazes de tratar as bactérias resistentes — chamadas superbactérias.
De acordo com o documento, que é uma revisão do relatório de 2020, foram analisadas as drogas antibacterianas em estágios de desenvolvimento clínico e pré-clínico ao redor do globo, e concluiu-se que nenhum país do mundo está desenvolvendo tratamentos antibacterianos adequados para conter o avanço das bactérias resistentes a medicamentos.
Atualmente, existem 43 antibióticos sendo criados que, todavia, são incapazes de frear as 13 superbactérias descritas na Lista de Patógenos Bacterianos Prioritários da OMS. Essa lista é usada desde 2017 para informar e orientar áreas prioritárias para pesquisa e desenvolvimento.
Em entrevista ao Jornal da USP, o médico infectologista e epidemiologista Fernando Bellissimo Rodrigues, professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da Universidade de São Paulo, explicou que “as superbactérias exibem resistências a múltiplas classes de antimicrobianos, que são usados rotineiramente no tratamento dessas bactérias”.
Uso indiscriminado de antibióticos fortalece superbactérias
Rodrigues diz que a seleção das espécies de bactérias resistentes é artificialmente induzida. “As mutações que conferem resistência aos antimicrobianos ocorrem naturalmente, em várias espécies, porém não acarretam nenhuma vantagem à bactéria, a menos que na presença de antibiótico. Então, quanto mais antibiótico a gente usa, maior a probabilidade de seleção de mutantes resistentes àquela droga, por isso que o uso indiscriminado de antibióticos aumenta a incidência dessas cepas”.
Os antibióticos e antissépticos são substâncias importantes, que deveriam ser utilizadas apenas em momentos específicos, seguindo prescrições médicas ou de cirurgiões-dentistas. Ocorre que, na prática, o uso desses medicamentos é indiscriminado, o que pode prejudicar a saúde. “O uso indiscriminado não apenas não traz benefícios à saúde humana como pode trazer malefícios, por alterar a microbiota normal do corpo e aumentar a chance do indivíduo ser colonizado por bactérias multirresistentes”, afirma o infectologista.
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Maioria dos antibióticos fabricados são destinados à agropecuária
Não é somente o mau uso em seres humanos que impacta o fortalecimento das superbactérias. Cerca de 80% dos antibióticos produzidos são usados na agropecuária. Segundo Rodrigues, “isso é uma coisa muito perigosa, porque está pressionando a resistência bacteriana em uma situação em que esses medicamentos muitas vezes não são necessários”.
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Quando medicamentos antibióticos são superdosados ao longo do tempo na criação de animais, em vez de ajudarem a neutralizar agentes de doenças, acabam por fortalecer gradualmente esses micróbios, o que os torna inúteis.
A partir dessa resistência adquirida, as doenças começam a se propagar entre os animais criados para o consumo humano, afetando as pessoas por meio do contato dos animais com os trabalhadores responsáveis pela sua produção, transporte e comércio — além, é claro, do consumo de sua carne e de produtos derivados.
São poucos antibióticos verdadeiramente novos no mercado
O estudo da OMS revela que a maioria dos antibióticos disponíveis no mercado é de variações de antibióticos descobertos nos anos 80, e as perspectivas de mudança dessa realidade ainda são distantes. Isso porque apenas alguns medicamentos foram aprovados por agências regulatórias nos últimos anos. Atualmente, existem alguns produtos promissores em estudo e desenvolvimento, mas somente uma parte pequena deles chegará ao mercado devido aos desafios econômicos e científicos.
De acordo com o epidemiologista, o processo de desenvolvimento de novos antibióticos é caro e trabalhoso, porque “para cada droga, de maneira genérica, que chega ao mercado como medicamento de sucesso, que passou por todas as fases de testes de aprovação de segurança, muitas vezes a indústria tem que fazer a triagem de até 10 mil compostos”.
Soma-se a isso o fato de que, em comparação a outras classes de medicamentos, desenvolver novos antibióticos, que serão usados somente em casos excepcionais de infecções e por um curto período de tempo, não é economicamente viável.
Rodrigues explica que, por essa razão, as empresas estão deixando de investir na seleção e no desenvolvimento de novos antibióticos. “A menos quando recebem incentivos estatais”, ressalva.
Ele também destaca que “a Fundação Gates, o National Institutes of Health (NIH), nos EUA, e a União Europeia têm tentado compensar isso com fundos públicos, financiando o desenvolvimento de novas drogas”.
Resistência das superbactérias ameaça o exercício da medicina global
Globalmente, a escalada da resistência bacteriana também ameaça o exercício da medicina, tendo em vista que a área é dependente dos antibióticos. “Realmente, é preocupante e, nos dias de hoje, a gente já tem pacientes morrendo nas UTIs sem tratamento antimicrobiano”, afirma Rodrigues.
O uso de medicamentos não prescritos e inadequados para tratar a Covid-19 também intensificou o problema dessa escalada global de resistência das bactérias, juntamente à quantidade de infecções hospitalares que pacientes internados acabam contraindo. Segundo o médico entrevistado pela reportagem, muitos pacientes que contraem a doença estão “sendo tratados abusivamente e desnecessariamente com antibióticos e sofrendo infecções hospitalares em decorrência disso”.
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Ele alerta que, ocasionalmente, pacientes que precisaram ser hospitalizados devido à Covid-19 contraem infecções provocadas por bactérias resistentes e morrem, “não pela doença, mas pelo Acinetobacter ou pela Klebsiella pneumoniae, que são os dois agentes mais resistentes de todos na atualidade”. E o médico afirma que “isso não é uma ameaça potencial: já está acontecendo nos nossos hospitais”.
A pandemia também canalizou muitos investimentos em pesquisa para o seu enfrentamento, “tornando escassos os recursos de pesquisa para o desenvolvimento de novas drogas ou métodos de conter a resistência bacteriana”, finaliza o professor.
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