Recentemente me vi frente a um desafio pessoal. Minha filha completou onze anos e de presente de aniversário pediu um celular. Aparentemente algo muito comum já nesta idade, visto que praticamente todos os seus amigos da escola já possuem este dispositivo.

Minha primeira reação foi pensar em como seria importante oferecer a ela este equipamento para que não se sentisse excluída e permanecesse conectada junto ao seu grupo de amigos. Especialmente neste momento em que ainda estamos vivendo, com os desafios da pandemia de covid-19 e as aulas em modelo remoto.

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Por um instante achei que seria uma boa ideia. Mas depois analisei melhor e refleti que os riscos de uma exposição na internet, especialmente em redes sociais, para a formação da sua autoestima poderiam ser grandes. Além disso, o excesso ainda maior de estímulos e informações poderia gerar maior ansiedade e dependência a esses dispositivos.

Este tema foi muito bem abordado recentemente no filme “O Dilema das Redes”. As diferentes plataformas são construídas para gerarem estímulos e de fato causarem dependência de atenção. Minha filha já permanece hoje aproximadamente seis horas na internet por conta dos estudos. Este número com certeza aumentaria de forma significativa.

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Interessante observar que o desafio que eu vivi no meu dia a dia tem ressonância com o que pesquisadores vêm observando na prática em escala global. Em recente artigo publicado no site do MIT Technoloy Review, a pesquisadora e cientista de dados Tate Ryan-Mosleyarchive trouxe uma análise bastante completa sobre o impacto das redes sociais e, especialmente, de filtros de beleza e selfies na vida de meninas adolescentes.

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Ao monitorar o comportamento de jovens com idades entre 12 e 14 anos, Tate observou que o uso dos filtros de rosto, inicialmente, servia para pura diversão, mas posteriormente, especialmente com o boom das selfies, esse artifício começou a moldar a autoimagem projetada e, consequentemente, os padrões de beleza ideais de toda uma geração.

Em seu artigo, Tate faz um alerta importante. “Os filtros de rosto que se tornaram comuns nas mídias sociais são, talvez, o uso mais difundido da realidade aumentada. Os pesquisadores ainda não entendem a dimensão que o uso sustentado da realidade aumentada pode ter, mas eles sabem que existem riscos reais – e com os filtros de rosto, são as meninas que correm o maior risco. Elas são objetos de um experimento que mostrará como a tecnologia muda a maneira como formamos nossas identidades, nos apresentamos e nos relacionamos com os outros. E tudo está acontecendo sem muita supervisão.”

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Cientistas e pesquisadores da University College of London (a UCL) também apresentaram dados nessa mesma linha. Durante um período de tempo, eles monitoraram e entrevistaram mais de 11 mil adolescentes na faixa de idade de 14 anos e obtiveram dados bem alarmantes. As meninas que eram usuárias intensas das redes sociais apresentaram mais sintomas depressivos do que os meninos. As que se conectaram por três a cinco horas por dia tiveram um aumento de 26% nesses indícios, enquanto os meninos tiveram um crescimento de 21% em comparação com aqueles que usaram a mídia social por uma a três horas por dia.

Os filtros de realidade aumentada nas redes sociais são parte de um conjunto de tecnologias que vêm crescendo de forma exponencial, alimentando ainda mais os dilemas éticos e morais da nossa sociedade e, ao mesmo tempo, impulsionando o mercado de beleza. O Facebook, que também controla o Instagram, afirma que mais de 600 milhões de pessoas já usaram filtros nas duas plataformas. O aplicativo Facetune foi baixado mais de 60 milhões de vezes. Até o Zoom tem um recurso de “retocar minha aparência” para chamadas de vídeo. Especialistas avaliam que o valor de mercado global de investimentos em Realidade Virtual Aumentada (VR) e Inteligência Artificial (IA) será de US$ 126 bilhões em 2025.

InternetLab, um centro independente de pesquisa interdisciplinar, traz várias discussões a respeito desse tema. Inclusive, em seu manual de Reconhecimento Facial e o Setor Pivado, diz que por mais que o objetivo final do filtro não seja a identificação de uma pessoa determinada, para que a detecção aconteça é necessário coletar e tratar dados de rostos humanos, ocorrendo um processo de leitura dos atributos e pontos de referência de uma face.

Isso porque, para que as funcionalidades básicas de um algoritmo de reconhecimento facial possam ser executadas, será sempre necessário que um rosto seja detectado e sua imagem tratada, mesmo que tais dados sejam posteriormente excluídos ou anonimizados.

Em maior ou menor grau, o reconhecimento facial permitirá acesso a diversos dados de natureza privada dos titulares: gênero, idade, raça, etc. A utilização desses dados em excesso ou descumprimento às finalidades de sua coleta podem representar violações à privacidade dos indivíduos analisados pelo recurso.

Por isso, é sempre bom lembrar que o mau uso da tecnologia pode resultar em práticas abusivas, discriminação, invasão de privacidade e violação de direitos à proteção de dados.

Provocar estas reflexões e estabelecer o diálogo entre empresas de tecnologia, sociedade e universidades são tópicos extremamente importantes para o desenvolvimento de políticas e diretrizes seguras para o uso da internet e das redes sociais em todas as faixas etárias – com foco de atenção a crianças e adolescentes. Levar este debate à escola ou dentro de casa é fundamental, pois são todos pontos potenciais de contato onde os jovens podem ser encorajados e apoiados a refletir não apenas sobre o uso das redes sociais, mas também sobre outros aspectos de suas vidas.

A revolução digital veio para ficar e as transformações serão cada vez mais aceleradas e profundas. Todos nós temos certa responsabilidade neste processo. Como mãe e como especialista na área da tecnologia, continuarei atenta.

*Letícia Piccolotto é Presidente Executiva da Fundação BRAVA (www.brava.org.br) e fundadora do BrazilLAB – primeiro hub de inovação GovTech que conecta startups com o poder público.

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