Não faz muito tempo em que o máximo que uma mulher poderia alcançar na Ciência era o cargo de secretária. Se hoje, universidades e instituições de pesquisa oferecem um ambiente bem mais justo, com muita coisa para melhorar, mas bem mais igualitário, precisamos agradecer ao esforço e a determinação de mulheres como Jocelyn Bell Burnell, que lutou contra o preconceito, derrubou os tabus de uma sociedade machista e mudou a história da astronomia.

Naquela época, eram poucas as universidades que aceitavam mulheres. A função principal de uma mulher na sociedade era casar com um bom marido e lhe dar filhos, preferencialmente, homens. Quando Jocelyn Bell se tornou noiva foi parabenizada efusivamente por todos à sua volta, incluindo muitos daqueles que nunca lhe falaram nada sobre ela ter realizado uma das maiores descobertas da astrofísica do seu tempo: os pulsares.

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[ Jocelyn Bell Burnell em 1967 – Créditos: Roger W Haworth ]

Susan Jocelyn Bell Burnell nasceu na Irlanda do Norte em 1943. Desde criança, já sabia que queria ser astrônoma, mas naquela época, não haviam mulheres astrônomas que pudessem lhe servir de referência. Entre suas leituras, a que mais lhe despertou o interesse foi o livro “Fronteiras da Astronomia” do renomado astrônomo britânico Fred Hoyle, e que acabou se tornando uma referência para Jocelyn. 

Ela sempre esteve ciente dos enormes desafios que ela precisaria enfrentar para seguir uma carreira na ciência. Na escola secundária, quando os professores separaram a turma e mandaram os meninos para o laboratório de ciências e as meninas para a cozinha, para aprenderem a ser donas-de-casa, Jocelyn não se conformou. 

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Ela até perdeu a primeira aula, mas contou aos seus pais, que sempre lhe deram apoio, e eles “convenceram” a escola a permitir que as alunas pudessem escolher o que gostariam de aprender. A partir da segunda aula de Ciências estavam lá, Jocelyn Bell e outras duas meninas. 

Na faculdade, Jocelyn era a única mulher entre os 50 alunos do curso de Física. E a cada vez que ela entrava em sala de aula ,era recebida por assobios de seus colegas, que batiam os pés no chão e as mãos na mesa em um ritual asqueroso e constrangedor, que fazem lembrar aquelas cenas de êxtase que precediam os rituais de sacrifício humano nos filmes de Indiana Jones. Não fosse Jocelyn Bell tão ciente daquilo que queria para sua vida, provavelmente teria desistido da faculdade e a nossa história terminaria aqui.

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Depois de se formar com distinção na Universidade de Glasgow, ela foi aceita no Programa de Pós Graduação de Cambridge, uma das mais respeitadas Universidades do Reino Unido. Lá, ela foi trabalhar com Antony Hewish, que estava construindo um radiotelescópio para estudar os quasares, objetos extremamente energéticos e que haviam sido descobertos recentemente.

[ Representação artística de um quasar – Créditos: Robin Dienel/Carnegie Institution for Science ]

Por dois anos, Jocelyn ajudou a construir o radiotelescópio, que mais parecia o varal de uma república de estudantes, com quilômetros de cabos suspensos por hastes, e em uma base, os sinais de rádio vindos do espaço eram plotados em rolos e mais rolos de papel milimetrado. Quando o radiotelescópio entrou em operação, Jocelyn era a única responsável por operar e analisar os gráficos gerados em busca dos sinais característicos dos quasares. 

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Aquele não era um radiotelescópio que pudesse ser apontado para onde se quer estudar. Ele apontava em uma direção do céu e a rotação da Terra fazia com que ele fosse varrendo longas faixas de observação do globo celeste. Ele funcionava 24 horas por dia, gerando quilômetros de gráficos que Jocelyn Bell analisava diariamente. Certo dia, em novembro de 1967, ela encontrou algo inesperado: um borrado que não se parecia com nada que ela tivesse visto antes. 

Intrigada, ela levou o problema até seu orientador, Antony Hewish, que lhe respondeu: “Isso é interferência”.  Hewish imaginou que Jocelyn havia conectado de maneira errada algum dos cabos do radiotelescópio e aquele sinal tinha algo a ver com isso. 

Jocelyn sabia que não era interferência. Então, se fosse algum sinal vindo do espaço, ele se repetiria a cada volta da Terra, e se ela pudesse aumentar a velocidade com que os rolos de papel eram gravados, teria uma definição bem melhor do sinal. Quando ela fez isso, percebeu que estava diante de algo espetacular. Aquele borrado era, na verdade, um sinal pulsante, com período bem definido. Ela ligou imediatamente para Hewish, que insistiu na história de interferência, mas Jocelyn o convenceu a ir até o observatório e lá ele mudou de opinião. Ainda não sabiam o que era, mas Jocelyn havia feito uma descoberta incrível. 

[ Primeira detecção de um pulsar registrado por Jocelyn Bell – Créditos : National Radio Astronomy Observatory ]

Um novo projeto de pesquisa foi iniciado para tentar entender o que era aquela fonte de sinal. Nesses estudos, Jocelyn descobriu mais uma fonte de sinal pulsante em outra região do espaço. Mas sua maior surpresa veio alguns dias depois, quando encontrou boa parte da comunidade astronômica britânica em um colóquio convocado por Antony Hewish.

Ele falava sobre a descoberta e discutia como aquela informação poderia ser publicada. Entre os astrônomos presentes estava Fred Hoyle, autor do livro  que inspirou Jocelyn a se tornar astrônoma. Hoyle foi um dos grandes entusiastas daquela descoberta e um dos primeiros a propor que o sinal poderia ser gerado por uma remanescente de supernova, algo que foi comprovado mais tarde.

[ Jocelyn Bell, quando estudante de pós-graduação em Cambridge em 1967 – Créditos: The News Blender ]

Quando estrelas com massa superior a de 8 sóis chegam ao fim da sua vida, elas geram uma supernova, um dos mais poderosos eventos do Universo, uma explosão colossal que lança no espaço todas as camadas mais externas da estrela, restando apenas um núcleo denso e compacto, chamado de “estrela de nêutrons”. 

Essas estrelas de nêutrons giram rapidamente, produzindo um campo magnético excepcionalmente intenso e que gera um fluxo de radiação emitida a partir de seus pólos magnéticos. E dependendo das posições do eixo de rotação, dos pólos magnéticos e da Terra, esse fluxo de radiação pode ser percebido como um farol cósmico, gerando intensos pulsos de radiação e, por isso, são chamados de pulsares

E tudo isso, foi percebido pela primeira vez, por Jocelyn Bell. Mas foi Antony Hewish quem escreveu o artigo sobre a descoberta. Jocelyn permaneceu envolvida com aquela pesquisa até que foi pedida em casamento e passou a ser tratada diferente por seus colegas de trabalho. Imaginavam que ela seria forçada pelo marido a abandonar a pesquisa, ou que uma gravidez tiraria a atenção dela da ciência. O fato é que ela passou a ser menosprezada por ser mulher, e isso a levou a deixar Cambridge e abandonar Hewish, mas nunca abandonou a Ciência. 

Poucos anos depois, Jocelyn Bell viu o Prêmio Nobel de Física de 1974 ser entregue a Antony Hewish em reconhecimento ao seu papel na descoberta dos pulsares. Jocelyn até se disse feliz por Hewish, mas Fred Hoyle não. O astrônomo que inspirou a menina que de fato fez aquela descoberta ficou enfurecido e condenou a Academia Sueca por ter ignorado o nome de Jocelyn da premiação.

E esse não é o único caso de falta de reconhecimento e apagamento histórico do trabalho das mulheres na ciência. Mas Jocelyn soube superar isso tudo, e quando, em 2018 recebeu o prêmio Breakthrough pela descoberta dos pulsares, ela resolveu doar todos os US$ 3 milhões que ganhou para que o Instituto de Física do Reino Unido promovesse bolsas de estudos para refugiados e estudantes de classes minoritárias.

[ Jocelyn Bell, 44 anos depois de ter sido “esquecida” pelo Nobel, recebendo o Prêmio Breakthrough por sua descoberta dos pulsares – Reprodução Facebook  ]

Se quando criança, ela não encontrava na Astronomia mulheres que lhe servissem de referência, hoje, Jocelyn Bell Burnell se tornou essa mulher, inspiração para toda uma geração de jovens meninas que desejam um dia encontrar espaço na Ciência que estuda o Universo.