Um estudo publicado na revista Nature há pouco menos de um mês descreveu uma descoberta importante no interior da Paraíba: pinturas rupestres lado a lado com pegadas de dinossauros de até 145 milhões de anos. Os achados aconteceram no Sítio do Serrote do Letreiro, em Sousa (PB), região já conhecida por seus registros arqueológicos.

A pesquisa chama a atenção para algo importante: como as pinturas foram feitas ao redor das pegadas, propositalmente cuidando para não danificá-las. Em alguns casos, as artes parecem ter, inclusive, imitado os fósseis.

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Ao Olhar Digital, a paleontóloga Aline Ghilardi, uma das quatro participantes do estudo, explicou como essa relação entre as pegadas e as pinturas diz mais sobre o passado do Brasil do que parece.

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Paleontologia e arqueologia

Antes de tudo, vale lembrar que, apesar do estudo unir as duas áreas de conhecimento, arqueologia e paleontologia têm focos diferentes.

Como Ghilardi explicou, a arqueologia estuda as populações humanas do passado e a sua cultura. Por outro lado, a paleontologia estuda a vida no passado do planeta, o que inclui fósseis de dinossauros e até mesmo da linhagem humana.

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Relação entre os fósseis e as pegadas

Com isso estabelecido, o estudo destaca a relação entre as pegadas de fósseis nas paredes do sítio e os registros rupestres.

Para a paleontóloga, algo curioso é que as pinturas nunca sobrepõem as pegadas, o que levou os pesquisadores a crer que os povos responsáveis por ela reconheceram aquelas estruturas e intencionalmente não quiseram danificá-las. Pelo contrário, eles interagiriam com elas.

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Isso mostra como a conexão humana com os fósseis está presente há muito mais tempo do que podemos imaginar.

Por vezes, temos a impressão de que os fósseis só começaram a ser trabalhados com o desenvolvimento da ciência ocidental, moderna, que usamos até hoje. Isso (os achados em conjunto) demonstra que populações muito antigas, muito antes da ciência ocidental se estabelecer pelo mundo, já interagiam com essas estruturas. Certamente, dessa interpretação surgiram formas de tentar entender o que significavam e esses registros são uma forma de ciência.

Aline Ghilardi, ao Olhar Digital

A pesquisadora ainda complementa que as descobertas refutam a ideia de que, antes da colonização, não havia ciência. O estudo é uma evidência de como eles tinham um conhecimento sobre o ambiente em que viviam e interagiam com ele muito antes da ciência moderna.

Arte rupestre e pegadas de dinossauros encontradas em Sousa (Foto: Troiano et al., Scientific Reports, 2024)

Relembre a descoberta

O Olhar Digital reportou as descobertas do estudo aqui, mas vamos a um breve resumo:

  • Pesquisadores encontraram artes rupestres pré-coloniais e pegadas de dinossauros que viveram há até 145 milhões de anos no Sítio Serrote do Letreiro, em Sousa (PB);
  • Um dos destaques foi a associação das pinturas às pegadas, indicando que os povos responsáveis reconheceram as marcas e as complementaram;
  • Na primeira estrutura rochosa analisada, o estudo encontrou 22 símbolos ligados à pegada. No segundo, eram apenas dois petróglifos (pareciam haver outros, que se tornaram ilegíveis com o tempo). O terceiro conjunto rochoso tinha 30 esculturas, além de bicadas e rastros possivelmente deixados por dinossauros;
  • A pesquisa estima que as artes rupestres feitas em associação às pegadas são de autoria de povos indígenas de até nove mil anos, antes da chegada dos europeus no continente;
  • Ainda, elas possivelmente foram feitas por indivíduos diferentes, já que tem variação de estilos;
Arte rupestre e pegadas de dinossauros encontradas em Sousa (Foto: Troiano et al., Scientific Reports, 2024)

Outros dinossauros já foram encontrados no Serrote do Letreiro

As pegadas pertenciam a dinossauros terópodes, saurópodes e iguanodontianos, que viveram no período Cretáceo Inferior, entre 100,5 milhões e 145 milhões de anos atrás.

Ghilardi explicou que não é possível pontuar exatamente a qual espécie a pegada pertence, mas sim a grupos maiores de dinossauros. Um deles é o titanossauro, de uma linhagem herbívora que tinha uma forma de caminhar muito específica.

Essa não é a primeira vez que registros dos gigantes pré-históricos são encontrados na região: a cidade de Sousa e o sítio do Serrote do Letreiro são famosos por isso. Inclusive, o time de futebol da cidade, o Sousa Esporte Clube, ganhou o apelido de “Dinossauro verde do sertão” e o mascote, obviamente, é um dinossauro.

A paleontóloga contou que, enquanto outros lugares do Brasil têm fósseis de outros períodos históricos, a Paraíba tem registros do período Cretáceo em abundância. O Serrote do Letreiro, por exemplo, tem uma diversidade grande de pegadas preservadas, inclusive de dinossauros carnívoros que ajudam a recontar a história do Brasil. A descoberta dessa vez é mais um dos casos que complementam o passado pré-histórico e pré-colonial da região.

Ilustração de titanossauros (Imagem: Ilustração de Júlia d’Oliveira/Reprodução)

Quem eram os povos das artes rupestres?

No estudo, a estimativa é que as artes tenham sido feitas por povos indígenas de até nove mil anos, antes da chegada dos europeus no continente. É provável que a autoria seja de pessoas diferentes, já que tem variações de estilos entre si.

Segundo Ghilardi, esse povo responsável viveu por todo o Seridó, uma região do nordeste brasileiro. Isso porque as formas geométricas encontradas no Serrote do Letreiro são semelhantes a outras encontradas no Rio Grande do Norte e no Ceará, indicando que era um povo que se espalhou pela região.

Ao contrário do que parece, ele não foi extinto com o tempo com a colonização. Na verdade, a população se dividiu em outras culturas regionais e o conhecimento foi passado para frente aos descendentes.

Arte rupestre e pegadas de dinossauros encontradas em Sousa (Foto: Troiano et al., Scientific Reports, 2024)

Como preservar os registros do passado do Brasil?

  • Uma das consequências da visibilidade da pesquisa é o aumento no turismo no local, que, para Ghilardi, é algo muito bem-vindo;
  • No entanto, ela destaca a necessidade de medidas protetivas para preservar os registros;
  • Um dos riscos é a própria ação do tempo e do intemperismo, como o calor, que faz as rochas contraírem e se dilatarem. Ou a chuva ácida, por exemplo, que desgasta as pinturas ao longo dos milhões de anos;
  • Ações antrópicas também ameaçam a preservação. A presença do gado, com o peso e o impacto dos cascos, pode danificar os fósseis ou a própria ação direta do homem, de alterar os registros;
  • Algumas das soluções pontuadas são uma cobertura para minimizar os impactos da chuva e sinalizações de não aproximação.

Próximos passos da pesquisa

Durante o estudo, os pesquisadores registraram as três áreas principais do sítio do Serrote do Letreiro usando um drone de alta qualidade.

Aline Ghilardi contou ao Olhar Digital que uma das expectativas da pesquisa é, depois de processar os dados, digitalizar os registros e disponibilizá-los em formato 3D, para que qualquer pessoa do mundo possa visitar um pedaço do Serrote do Letreiro e conhecer mais sobre o passado do Brasil.