Considerado figura chave da revolução científica do século XVII, o astrônomo, astrólogo e matemático alemão Johannes Kepler é conhecido, principalmente, por ter formulado as leis fundamentais da mecânica celeste, que tratam do movimento dos planetas. Uma análise recente de esboços feitos por ele em 1607 sugere que o material pode representar um grande avanço também nos estudos sobre o Sol.

Após a revolução telescópica de Galileu Galilei, que transformou nossa compreensão da Lua e dos planetas, os astrônomos começaram a focar no Sol, um alvo mais perigoso de se observar. 

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Embora pesquisadores chineses tenham registrado manchas solares há mais de dois mil anos, foi somente em 1610 que as observações de Thomas Harriot, Galileu e Christoph Scheiner forneceram os primeiros registros detalhados sobre o número e localização dessas manchas.

De acordo com um artigo publicado na revista The Astrophysical Journal Letters, no entanto, Kepler havia feito isso antes, sem um telescópio. Ele usou uma “câmera obscura”, um dispositivo ainda utilizado atualmente para ensinar física e observar eclipses com segurança. Essa técnica permitia que ele visse apenas as manchas solares maiores, mas ainda assim seus registros se mostraram inestimáveis.

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Ciclos solares sempre duraram 11 anos?

Desde 1715, observa-se que a atividade das manchas solares segue um ciclo de aproximadamente 11 anos. Esse ciclo pode variar ligeiramente em duração e intensidade, mas é regular o suficiente para permitir previsões. No entanto, entre 1645 e 1715, quase não houve manchas solares, um período conhecido como Mínimo de Maunder. A natureza dos ciclos solares antes dessa fase ainda é debatida. Seriam eles semelhantes aos ciclos modernos ou diferentes?

Reconstrução do número de manchas solares nos anos anteriores ao Mínimo de Maunder, adicionando os dados de Kepler às observações feitas após a invenção do telescópio. Crédito: Dr. Hisashi Hayakawa

Se os ciclos de 11 anos são a regra, isso sugere que eles podem desaparecer temporariamente, como no Mínimo de Maunder, mas inevitavelmente retornam. Por outro lado, se os ciclos anteriores eram diferentes, isso poderia indicar que estamos vivendo em uma fase rara de estabilidade solar.

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A importância desse debate vai além da curiosidade científica, pois o ciclo das manchas solares está correlacionado com tempestades geomagnéticas que podem prejudicar satélites e redes elétricas. 

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Anéis de árvores oferecem um registro da atividade solar, mas sua precisão é contestada. Uma reconstrução de dados desses anéis sugere um ciclo de cinco anos seguido por um de 16 anos antes do Mínimo de Maunder. No entanto, outra reconstrução aponta para ciclos solares de durações normais – então, em qual devemos confiar?

Resposta pode estar na localização de mancha solar desenhada por Kepler

Os esboços de Kepler entram em cena para ajudar a resolver essa questão. Produzidos com duas horas de intervalo, em Praga, na República Tcheca, esses desenhos não oferecem um tamanho de amostra ideal, o que inicialmente levou muitos historiadores a subestimar seu valor. Para o autor do novo estudo, Hisashi Hayakawa, da Universidade de Nagoya, no Japão, isso foi um erro.

Segundo Hayakawa, o mais significativo nos esboços de Kepler não é apenas a detecção de uma mancha solar, mas sua localização. As manchas solares variam não apenas em número durante um ciclo solar, mas também em posição. Elas aparecem inicialmente entre os polos e o equador do Sol, e, à medida que o ciclo avança, se aproximam mais deste último.

Embora o pequeno número de manchas desenhadas por Kepler possa não parecer suficiente, sua localização pode ajudar a identificar o momento do ciclo, especialmente se combinados com registros mais extensos começando três anos depois. Para resolver isso, é necessário considerar a precisão dos esboços de Kepler e o ângulo de observação para localizar o equador e os polos solares. 

Desenhos do Sol feitos por Kepler em 28 de maio de 1607, na casa do cientista (a) e na oficina (b), bem como sua apresentação esquemática (c) elaborada em 1609. Crédito: Dr. Hisashi Hayakawa

Ajustando para o ângulo do equipamento de Kepler, Hayakawa e sua equipe concluíram que os desenhos representam um grande grupo de manchas solares em baixas latitudes, o que é estatisticamente mais provável no final de um ciclo solar. Se Kepler tivesse observado novamente um ou dois anos depois, provavelmente não teria visto manchas.

Caso essa interpretação esteja correta, isso significa que o ciclo solar observado por Galileu e outros (conhecido como ciclo -13) tinha uma duração regular, fortalecendo a ideia de que os ciclos antes do Mínimo de Maunder eram semelhantes aos atuais.

“É fascinante ver como registros históricos podem fornecer implicações científicas cruciais para os cientistas modernos, mesmo séculos depois”, disse a coautora Sabrina Bechet, do Observatório Real da Bélgica, em um comunicado. “É impressionante que os registros de figuras históricas possam beneficiar a comunidade científica muito tempo depois de suas mortes”.

Ironicamente, o telescópio espacial nomeado em homenagem a Kepler, que observa trânsitos de mundos distantes, também lida com manchas estelares, assim como o astrônomo desenhou uma mancha solar pensando que era Mercúrio. Embora ele tenha reconhecido seu erro em 1618, após observações adicionais, seu “erro” acabou proporcionando um valioso tesouro científico – e provando que não poderia haver nome mais adequado à sonda de exoplanetas da NASA.