Enquanto o projeto de retorno de amostras de Marte da NASA, um esforço conjunto com a Agência Espacial Europeia (ESA), passa por uma revisão orçamentária rigorosa, a China “corre por fora” em direção ao mesmo objetivo.
Necessitando ser reformulada para se encaixar em menos de US$11 bilhões, a iniciativa euro-americana pretende retornar as amostras coletadas pelo rover Perseverance, da NASA, até 2040. No entanto, a China tenta antecipar esse feito com a missão Tianwen-3, que seria lançada em 2030 e foi antecipada em dois anos.

No mês passado, durante a segunda Conferência Internacional de Exploração do Espaço Profundo da China, realizada em Huangshan, na província de Anhui, o designer-chefe do projeto Tianwen-3, Liu Jizhong, confirmou que o lançamento da missão foi adiantado para 2028.
A empreitada envolve dois foguetes Long March-5 para superar as limitações atuais de carga, um para enviar um módulo de coleta à superfície de Marte e outro para trazer as amostras para a Terra. À agência de notícias Xinhua, Liu destacou o compromisso da China em liderar uma das missões mais ambiciosas já planejadas para Marte.

O objetivo científico da missão Tianwen-3 é claro: buscar sinais de vida. A espaçonave terá componentes de mobilidade para recolher amostras próximas à área de pouso, similar ao que foi feito nas missões lunares Chang’e 5 e Chang’e 6.
Em 2020, a Chang’e 5 trouxe amostras lunares, feito repetido pela sucessora Chang’e 6, em 2023, mas, desta vez, entregando materiais do lado oculto da Lua. Agora, o país segue o mesmo caminho em Marte, com uma missão que busca cooperação internacional em dados e amostras, além de colaborações futuras.
Especialistas falam sobre a disputa entre EUA e China por Marte
Em entrevista ao site Space.com, o cientista planetário James Head, da Universidade Brown, em Rhode Island, EUA, disse que a escolha do local de pouso em Marte não está completamente definida. “Mas minha aposta seria novamente em Utopia Planitia, onde a China já operou com sucesso o rover Zhurong, da missão Tianwen-1, em 2021”. Para Head, a familiaridade dos cientistas chineses com a área e sua geologia representa uma vantagem para o sucesso da missão.
Scott Hubbard, professor adjunto da Universidade de Stanford, na Califórnia, e ex-diretor do programa de Marte da NASA, vê o avanço da China também como um movimento político. “Se a China trouxer com sucesso mesmo uma pequena amostra de Marte com segurança antes dos EUA, isso constituiria um ‘Momento Sputnik'”, disse ele, referindo-se ao golpe científico e político da antiga União Soviética ao colocar o primeiro satélite na órbita da Terra, em 1957.
Ele ressalta que, embora uma coleta de superfície, realizada por um módulo fixo, possa ter menor valor científico do que as amostras cuidadosamente selecionadas pelo rover Perseverance, explorando a cratera Jezero em Marte desde 2021, a China realizar essa missão primeiro teria um valor simbólico substancial. “Minha sensação é que o poder performático e político de uma manchete ‘China vence os EUA’ é muito mais importante para a República Popular da China”.
Hubbard ressalta que a colaboração entre NASA e ESA no retorno de amostras de Marte é fruto de 20 anos de desenvolvimento de tecnologias e conhecimento acumulado. Em sua visão, os EUA investiram décadas em uma campanha composta por orbitadores, rovers e módulos de pouso que pavimentaram o caminho para a seleção da cratera Jezero como local ideal para a coleta de amostras.

Chris McKay, especialista em Marte do Centro de Pesquisa Ames da NASA, tem uma visão crítica sobre o retorno de amostras. Ele lembra que, em 2002, sugeriu uma abordagem mais simples e direta para uma missão de coleta em Marte, similar à estratégia que a China adotou para trazer amostras do lado oculto da Lua. “Se tivéssemos seguido essa abordagem, já teríamos amostras de Marte aqui na Terra”.
Segundo o especialista, ao optar por um modelo mais complexo, o projeto NASA-ESA se tornou um desafio orçamentário significativo, o que colocou em risco o cronograma original da missão.
Para Pascal Lee, cientista do Instituto SETI e do Instituto Marte, a chegada de amostras de Marte pela China seria positiva para a ciência, mas um sinal de alerta para os EUA. Ele ressalta que, além do impacto científico, o retorno de amostras de Marte representa um passo em direção a futuras missões tripuladas ao Planeta Vermelho. “Para a NASA, há mais do que apenas ‘recuperar as amostras primeiro’ em jogo. Isso vai direto para a nossa capacidade de liderar a exploração de Marte por humanos, o que inclui devolvê-los com segurança à Terra”.
Hubbard também aponta para um fator delicado: a China utiliza, em grande parte, as tecnologias e os conhecimentos científicos que a NASA e a ESA desenvolveram e publicaram ao longo de duas décadas de investimento. O ex-diretor da NASA acredita que os contribuintes dos EUA e da Europa deveriam estar frustrados com a falta de financiamento suficiente por parte dos congressos americano e europeu, que agora comprometem o calendário original de retorno de amostras da parceria.
Marcelo Zurita, presidente da Associação Paraibana de Astronomia (APA), membro da Sociedade Astronômica Brasileira (SAB), diretor técnico da Rede Brasileira de Observação de Meteoros (BRAMON) e colunista do Olhar Digital, também comentou sobre essa disputa entre norte-americanos e chineses pela liderança na entrega de amostras marcianas à Terra.
“Se me fizesse essa pergunta um ano atrás, responderia sem titubear que seriam os EUA, único país a conseguir pousar e realizar missões bem sucedidas no Planeta Vermelho. Mas hoje, a China vem se desenvolvendo muito rápido, com tecnologias próprias e superando muito rapidamente os desafios mais complexos da exploração espacial”, disse o especialista.
Segundo ele, os EUA ainda têm uma boa vantagem tecnológica. “Creio que com o devido investimento, eles conseguiriam em poucos anos lançar missões para resgatar as amostras coletadas pelo Perseverance e trazê-las para a Terra. Mas, se bobearem, a China, que não vem economizando com seu programa espacial, pode surpreender e acabar vencendo essa corrida”.
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Essa concorrência entre EUA e China pela coleta de amostras de Marte simboliza mais que uma questão científica. Representa também uma competição por influência global na exploração espacial, envolvendo o uso de tecnologia avançada, cooperações internacionais e esforços de décadas.
O retorno de amostras de Marte poderia redefinir o entendimento do planeta e oferecer pistas sobre a presença de vida fora da Terra. Para além disso, a missão Tianwen-3 ressalta a rápida ascensão da China na pesquisa espacial, mirando em uma possível futura viagem tripulada ao planeta.
Com ambos os países empenhados em alcançar esses feitos, o futuro da exploração de Marte parece cada vez mais competitivo e promissor.