Desde 2016, o mundo está de olho em como o Facebook lida com temas políticos delicados. Foi quando ficou evidente que a rede social se tornou um canal preferencial para propagação de discursos de ódio, incitação à violência e divulgação de informações falsas que ajudaram a criar um cenário mundial caótico.

A empresa tomou algumas medidas para tentar abafar esse tipo de uso da rede social, mas aparentemente não foi o suficiente. Não à toa, durante o mês de junho o Facebook tem sofrido um dos maiores boicotes de sua história, mirando atingir exatamente a parte mais sensível da companhia: seus cofres. Não são os usuários que estão deixando a plataforma; são os anunciantes.

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Chamada de “Stop Hate for Profit” (“Chega de ódio pelo lucro”), a campanha nasceu nos Estados Unidos com algumas das maiores marcas do planeta forçando a companhia a adotar políticas mais rígidas de controle de discursos de ódio. Entre as companhias que já confirmaram participação na suspensão de publicidade na rede social estão Adidas, Coca-Cola, Ford, Honda, Levi’s, Microsoft, Mozilla, Pepsi, Puma, Reebok, Starbucks, Unilever e Vans, para mencionar apenas as empresas que são mais conhecidas no Brasil.

A campanha nasceu na esteira das manifestações por justiça racial nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd em uma abordagem policial por um oficial branco. Segundo os organizadores, o Facebook “permitiu a incitação de violência contra manifestantes” e deu status de respeitável a sites de notícias de qualidade duvidosa com envolvimento com supremacistas brancos. A rede social também já tinha sido amplamente criticada por não agir contra um post de Donald Trump falando sobre violência contra manifestantes.

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Na visão dos organizadores, que incluem organizações como Anti-Defamation League, Color of Change, Common Sense Media, Free Press, National Association for the Advancement of Colored People, Sleeping Giants, League of United Latin American Citizens, Mozilla Foundation e National Hispanic Media Coalition, enquanto não há mais vigilância sobre esse tipo de comportamento, que costuma gerar muito engajamento, o Facebook está essencialmente lucrando com ações de ódio de seus usuários, e marcas podem não ficar satisfeitas em ter seus nomes associados a esse tipo de discurso.

São 10 ações recomendadas pelos organizadores para melhorar a forma como a empresa lida com esse tipo de material:

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  1. Estabelecer uma infraestrutura de direitos civis, incluindo executivos de alto escalão capazes de avaliar produtos e políticas para discriminação, vieses e ódio;
  2. Submissão a auditorias externas regulares sobre discursos de ódio e desinformação, com resultados publicamente acessíveis;
  3. Oferecer auditoria e reembolso a anunciantes cujas marcas foram expostas ao lado de conteúdo que foi excluído por violar termos de serviço;
  4. Encontrar e remover grupos públicos e privados que se baseiem em temas como supremacia branca, milícias, antissemitismo, conspirações violentas, negação do Holocausto, desinformação sobre vacinas e negação das mudanças climáticas;
  5. Implementação de termos de serviço que ajudem a limitar e eliminar discursos radicais da rede social;
  6. Não recomendar ou amplificar discursos ou conteúdos associados ao ódio, desinformação ou conspiração;
  7. Criar mecanismos que marquem automaticamente conteúdo de ódio em grupos privados para avaliação humana;
  8. Garantir a precisão de informações políticas eliminando a exceção para políticos, proibir desinformação sobre eleições e chamados de violência por políticos em qualquer formato;
  9. Criar times de especialistas para analisar ódio baseado em identidade e assédio;
  10. Possibilitar que indivíduos enfrentando ódio e assédio severos possam se conectar com um funcionário do Facebook.

A publicidade é responsável por nada menos do que 99% de todo o faturamento do Facebook, na casa de US$ 70 bilhões. Se existe alguém com poder de fazer com que a empresa mude sua atuação em questões-chave, são os anunciantes.

Dói no bolso

Como explica ao Olhar Digital Arthur Igreja, especialista em inovação digital, o Facebook já vem pressionado há anos, mas suas respostas aos questionamentos da sociedade sempre foram evasivas.

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Mesmo com uma série de boicotes apoiados por pessoas bastante conhecidas, como o fundador do WhatsApp, Brian Acton, o problema persistiu por anos. O fato é que, para o Facebook, a perda de alguns usuários não resulta em danos financeiros à empresa.

Afinal de contas, como explica Igreja, o usuário pode até deixar de usar o Facebook, mas dificilmente realizará um boicote completo aos aplicativos da companhia. E dentro desse cenário se incluem o Instagram, que também tem mais de 1 bilhão de usuários, e o WhatsApp, com mais de 2 bilhões. Ou seja: a maioria dos usuários de internet está na mão do Facebook, mesmo sem usar a rede social de mesmo nome.

Por este motivo, a única forma de forçar uma mudança concreta parte das empresas que realmente financiam a operação do Facebook. Faz sentido para elas, afinal de contas. Quem quer ter sua marca indiretamente patrocinando discursos supremacistas e homofóbicos?

Arthur Igreja conta que, para o publicitário, essa associação é péssima. “Seria o equivalente no mundo real à polícia encontrar um cativeiro e descobrir um banner da sua empresa, ou descobrirem uma fazenda que se aproveita de trabalho escravo e encontrarem um outdoor com a sua marca”, ele diz.

E o Facebook, mesmo que acidentalmente, acaba proporcionando esse tipo de associação quando não modera seu conteúdo de forma adequada. Quando o algoritmo valoriza conteúdo que rende muitas visualizações e muito engajamento, a tendência é que o material sensacionalista, que gere mais choque, acabe recebendo mais destaque. Consequentemente, também é o conteúdo que mais gera visualização de anúncios.

O resultado do movimento já foi sentido diretamente entre os acionistas. O boicote das empresas ao Facebook causou uma perda de US$ 75 bilhões na capitalização de mercado da companhia como resultado da desvalorização das ações, o que não afeta diretamente o faturamento da empresa, mas pode forçar com que investidores pressionem ainda mais Zuckerberg e sua equipe por mudanças.

Na visão de Igreja, o movimento é tão impactante e a situação do Facebook é tão delicada, que isso poderia representar o fim da empresa como a conhecemos atualmente, forçando mudanças drásticas na forma como a rede social opera.

Internacionalização

O movimento nasceu nos Estados Unidos, mas o fato é que ele está vagarosamente se espalhando. Jim Steyer, chefe da Common Sense Media, uma das organizações por trás do Stop Hate for Profit, o objetivo é expandir o boicote para marcas europeias também.

O Brasil  e chegando também ao Brasil. Perfis como o Sleeping Giants Brasil, que tem pressionado companhias para que suspendam publicidade em páginas que propagam desinformação, já iniciaram campanhas para que as empresas que aderiram ao movimento nos Estados Unidos também repitam a ação no Brasil.

Quando questionada sobre o assunto, por exemplo, a Coca-Cola, uma das marcas mais fortes a aderir ao boicote, se manifestou também no Brasil, afirmando que a interrupção dos anúncios aconteceria de forma global, e não apenas nos Estados Unidos, por 30 dias em todas as redes sociais para rever suas políticas de marketing.

A tendência neste momento é a internacionalização. Marcas globais enfrentam o mesmo problema no Facebook no mundo inteiro, e não é qualquer surpresa que a mesma política aplicada nos Estados Unidos seja padrão para outras filiais ao redor do planeta.

Os resultados da campanha

Desde o início da campanha, iniciada na metade do mês de junho, os organizadores conseguiram a adesão de empresas do mais alto patamar, o que fez com que o Facebook percebesse o tamanho do problema e anunciasse algumas medidas.

Mark Zuckerberg realizou uma apresentação na sexta-feira (27) para anunciar que a empresa…

  1. passará a aplicar sua política de restrição de discursos de ódio para os anúncios na rede social
  2. restringirá desinformação sobre as eleições nos dias anteriores à votação;
  3. incluir alertas em conteúdo “noticioso” que incite violência e venha de figuras públicas, como políticos de alto escalão, mas sem sua exclusão;
  4. permitirá auditoria externa dos padrões da comunidade;
  5. trabalhará com a Aliança Global para Mídia Responsável (GARM) para apurar os requisitos para segurança de marcas.

O Stop Hate for Profit, no entanto, enxergou ações insuficientes nessas medidas do Facebook. O grupo cita que a empresa não deu detalhes e um plano de ação claro sobre as mudanças que colocará em prática para impedir discursos de ódio. Cada um dos pontos acima tem uma queixa:

  1. O Facebook não se comprometeu a tomar ações mais amplas em grupos ou posts, onde o problema é mais significante;
  2. A desinformação sobre eleições poderá continuar circulando durante todo o ano, com exceção dos dias que antecedem a votação;
  3. Os posts “noticiosos” de figuras públicas que promovam violência podem ser etiquetados, mas não são deletados, mesmo com o Facebook consciente do risco que eles representam;
  4. Faltam mais detalhes sobre como será a auditoria externa, sobre como será a independência dos auditores e se os resultados serão públicos, e quando eles serão publicados
  5. A empresa também não deu detalhes sobre o trabalho que será desenvolvido com a GARM e o que isso realmente significa

O que diz o Facebook

Quando questionado pelo Olhar Digital sobre o tema, o Facebook se defende, afirmando que tem políticas para restringir discursos de ódio e que tem agido de forma mais firme que concorrentes como o Twitter e o YouTube. A empresa menciona um relatório publicado pela União Europeia, que diz que a rede social analisa proporcionalmente mais denúncias do tipo do que seus concorrentes em um período de 24 horas.

De acordo com a pesquisa, o Facebook conseguiu revisar 95,7% das denúncias, enquanto o Instagram conseguiu acompanhar 91,8% dos casos. Já os concorrentes YouTube e Twitter se limitaram a analisar 81,5% e 76,6% das denúncias respectivamente.

“Investimos bilhões de dólares todos os anos para manter nossa comunidade segura e trabalhamos continuamente com especialistas da sociedade civil para revisar e atualizar nossas políticas. Nos abrimos para uma auditoria de direitos civis e banimos 250 organizações supremacistas brancas do Facebook e Instagram. Os investimentos que fizemos em Inteligência Artificial nos possibilitam encontrar quase 90% do discurso de ódio proativamente, agindo sobre eles antes que um usuário nos denuncie, e um relatório recente da União Europeia apontou que o Facebook analisou mais denúncias de discurso de ódio em 24 horas do que o Twitter e o YouTube. Temos mais trabalho para fazer e continuaremos trabalhando com grupos de direitos civis, GARM (Global Alliance for Responsible Media) e outros especialistas para desenvolver ainda mais ferramentas, tecnologias e políticas para continuar essa luta”, diz ao Olhar Digital um representante da companhia.