Imagine que você é desprovido de visão, e uma empresa lhe promete um implante tecnológico que lhe dará, ainda que artificialmente, a possibilidade de ver o mundo de forma tão comum à maioria das pessoas. Imagine que, depois de anos enxergando o mundo em boa definição, você acabe voltando à cegueira porque essa mesma empresa declarou seu implante obsoleto e, com isso, deixou de lhe oferecer o suporte técnico necessário.

É exatamente isso que está acontecendo com vários pacientes da Second Sight Medical Products, uma empresa especializada em implantes oculares biônicos, de acordo com uma investigação jornalística promovida pelo IEEE Spectrum. Ao todo, a empresa atendeu mais de 350 pacientes – e a maior parte deles agora não enxerga, mesmo contando com o implante instalado em seus corpos.

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De acordo com a reportagem, sustentada por depoimentos de pacientes, porta-vozes, um co-fundador e personagens de casos de sucesso amplamente usados no marketing da companhia, a Second Sight chegou perto da falência há alguns anos, efetivamente deixando de suportar os implantes oculares Argus, divididos em duas gerações (“Argus I” e “Argus II”).

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O problema: não bastasse deixar centenas de pessoas sem nenhum tipo de auxílio, eles não comunicaram a ninguém o fim desse suporte.

“Eu era só uma pessoa fazendo o teste de uma tecnologia e, de repente, me tornei o porta-voz dela”, disse ao IEEE Spectrum Terry Byland, o único paciente da Second Sight a contar com as duas gerações de implantes – a primeira, colocada em seu olho direito em 2004 e, a segunda, em seu olho esquerdo em 2015.

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O que Byland diz não é um exagero: a Second Sight o usou em campanhas de divulgação das mais variadas possíveis. Ele concedeu entrevistas junto da empresa, participou de conferências do assunto e chegou até a conhecer o músico e cantor Stevie Wonder – ele próprio cego, porém não paciente da companhia – durante uma ação de marketing.

Hoje, Byland teme ficar cego de novo. Ele disse ao site que, ainda que seus implantes estejam funcionando, ele não sabe até quando será esse o caso, nem o que fará quando esse dia chegar. “Enquanto nada der errado, estarei bem. Mas se algo acabar dando errado, bem, eu estou ferrado, pois não há uma forma de consertar isso”.

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Os Argus são implantes de retina, conectados a uma área periférica do olho e conectados a um óculos especial que funciona como sua extensão direta. Os óculos capturam a imagem por meio de uma câmera especial, enviando-a para uma unidade de processamento na cintura, que “interpreta” essa imagem para o paciente.

Em 2019, a Second Sight descontinuou o produto em 2019, quase quebrou em 2020 e, em junho de 2021, uma IPO levantou US$ 57,5 milhões (R$ 294,24 milhões) em investimentos, com US$ 5 (R$ 25,60) por valor unitário de ação. A promessa era a de que a empresa concentraria seus esforços em um novo implante (chamado “Orion”), completamente cerebral e sem aparelhagem externa, para oferecer uma visão artificial aprimorada.

O interesse público, porém, nunca se recuperou e as ações caíram de preço – US$ 1,50 (R$ 7,68). Neste mês de fevereiro de 2022, a empresa anunciou uma proposta de fusão com uma empresa biofarmacêutica chamada Nano Precision Medical (NPM). Nenhum dos executivos de liderança da Second Sight estará no comitê diretivo da NPM, mas o foco desta companhia é outro: implantes que automatizam a entrega de medicamentos no corpo do paciente.

“É uma tecnologia fantástica nas mãos de uma empresa tosca”, disse Ross Doerr, outro paciente que recebeu seu implante em 2019 e chegou a ser elegível para atualizações no início de 2020. No entanto, a pandemia da COVID-19, em março daquele ano, levantou rumores desagradáveis sobre a saúde da Second Sight. Assustado, ele ligou para a sua terapeuta – funcionária da companhia:

“Engraçado você ter ligado agora”, disse a especialista em reabilitação visual. “Nós acabamos de ser – todos – demitidos. Ah, e você não vai mais receber aqueles upgrades”.

O IEEE Spectrum também destaca o caso de Barbara Campbell – possivelmente o mais perigoso dos três. Ela estava caminhando em uma baldeação na imensa rede de metrô de Nova York, quando a sua visão subitamente ficou escura. Não “foi escurecendo”. Em um instante, o mundo estava claro, e no outro, total escuridão.

“Eu me lembro exatamente de onde eu estava”, ela contou. “Estava saindo do trem nº 6 e ia em direção ao trem F. Estava prestes a descer as escadas e, do nada, escutei três ‘bipes’”. O som foi o prenúncio do seu implante – um Argus II – se desligando. Ele nunca mais voltaria a funcionar.

Evidentemente, o implante era bastante rústico e não conferia uma visão “Full HD”. De acordo com o co-fundador, Robert Greenberg, o resultado do uso da tecnologia era, essencialmente, padrões e formas em preto-e-branco que permitiam que seus usuários conseguissem identificar algumas formas – a faixa retangular de pedestres em contraste com o asfalto escuro ou alguns detalhes de um rosto que olhasse diretamente para eles, por exemplo.

“Ainda que não seja uma ‘visão normal’, é 100% melhor do que o que eu tenho agora”, disse Doerr.

O Argus II tinha outro problema: era demasiadamente caro. A Second Sight o comercializava por aproximados US$ 150 mil (pouco mais de R$ 768 mil, em valores atuais) – mais que o dobro que qualquer outro produto com funcionamento similar da época. Mas esse era apenas o valor de aquisição: uma vez implantado, o Argus II vinha com meses (até mesmo anos) de atendimento terapêutico exclusivo – ou seja, um profissional empregado pela empresa para atender um único paciente. Ao final de tudo, o tratamento ficava perto de US$ 500 mil (mais de R$ 2,5 milhões).

“Mesmo com tudo isso, a empresa estava perdendo dinheiro”, disse Greenberg. “Com toda a operação estimada de vendas e regulamentações, [os implantes] não eram lucrativos”.

O “algo mais”: Second Sight queria o cérebro dos pacientes

De acordo com Greenberg, o objetivo da empresa era o de, eventualmente, construir um implante tão capacitado que traria benefícios como visão térmica, reconhecimento facial e upgrades via software, com pesquisas sendo idealizadas (mas nunca executadas) sobre como contornar a necessidade de conectar a tecnologia ao olho do paciente e, ao invés disso, estimular diretamente o córtex cerebral.

Greenberg, porém, nunca conseguiu levar a companhia nessa direção. Sua relação com o comitê diretivo foi se degradando até que, eventualmente, ele renunciou a sua cadeira como CEO em 2015 e, no ano seguinte, deixou o comitê e efetivamente cortou relações em definitivo com a Second Sight. O motivo, ele não pôde contar ao IEEE Spectrum, citando um acordo de não divulgação (Non Disclosure Agreement, o popular “embargo”).

Dali em diante, tudo começou a cair pelas frestas: de acordo com um engenheiro que pediu pelo anonimato (também por ter assinado um embargo), a Second Sight comunicou aos pacientes que deixaria – aos poucos – de produzir o Argus para se concentrar no Orion. A empresa prometeu o suporte continuado, mas como as investigações mostraram, isso nunca veio. O engenheiro em questão confirmou isso:

“A gente simplesmente não deu mais suporte ao Argus depois disso”, ele disse ao Spectrum. “Não o vendíamos mais, não o fabricávamos mais, não tínhamos mais nada a ver com ele”.

Foram alguns anos nesse ritmo até que, em fevereiro de 2020, o diretor de Pesquisa e Desenvolvimento deixou a empresa, e o então CEO fez o mesmo no mês seguinte. A Second Sight então dispensou a maior parte da sua folha de pagamento, culpando a COVID-19 por “dificuldades em estabilizar finanças”. Semanas mais tarde, já em abril, a maior parte de seu equipamento de escritório e de manufatura – desde a linha de montagem dos implantes até computadores nas mesas de funcionários – foi a leilão.

Nada disso foi comunicado a seus pacientes. Doerr conta que ficou semanas tentando contato com uma empresa que, para todos os efeitos, nem estava mais lá. “Figurativamente e literalmente, a Second Sight deixou seus pacientes no escuro”. E para ele, especificamente, isso era mais do que um problema.

O uso do implante o fazia se sentir levemente enjoado. Mas em 2020, esse enjoo virou uma tontura bem séria, com vertigens intensas, como se ele sofresse de labirintite grave – algo que ele nunca teve. Preocupado, ele tentou agendar um exame de ressonância magnética para saber se os problemas vinham de algum tumor desconhecido. Entretanto, seu implante poderia interagir de forma adversa com o campo magnético do exame. Os médicos tentaram o contato com a Second Sight para ter maiores informações, mas ninguém atendeu o telefone. Eventualmente, Doerr fez uma tomografia computadorizada, que descartou a possibilidade de tumor.

“Até hoje, eu ainda não sei se tenho algum tumor no cérebro ou não”, ele conta, ressaltando que uma tomografia não dá o nível de certeza de uma ressonância.

A Second Sight – ou pelo menos o que sobrou dela – não comentou as informações divulgadas.

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