Muito já foi dito sobre o desejo do Oscar de tornar suas indicações (e, por extensão, seus vencedores) mais diversas, seja em termos de raça, gênero, sexualidade, etc.

E isso vem acontecendo. Um exemplo recente é “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo”, ou Mahershala Ali (homem negro de fé muçulmana) sendo um dos poucos atores a ganhar dois Oscars de Melhor Ator Coadjuvante, ou Chloé Zhao se tornando a segunda mulher (e primeira asiática) a ganhar o prêmio de Melhor Diretor(a).

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Não há dúvida de que algum progresso foi realmente feito. Porém, há um grupo minoritário em particular que teve apenas três vencedores do Oscar: pessoas com deficiências físicas. A primeira pessoa com deficiência física a ganhar um Oscar foi Harold Russell.

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Contudo, Russell não era ator; pelo menos, ele nunca treinou para ser um. Ele nunca sonhou em ser ator, nunca foi para a escola de teatro e certamente não pensou em ser famoso. Segundo o livro “Five Came Back”, de Mark Harris, tudo o que ele fez foi entrar na Segunda Guerra Mundial como instrutor de demolição para o Exército e perdeu as duas mãos quando um pacote de TNT defeituoso explodiu.

Após a guerra, ele frequentou a Boston University, onde apareceu em “Diary of a Sergeant”, documentário sobre veteranos de guerra em processo de reabilitação. Uma pessoa muito importante que viu a produção foi William Wyler.

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A essa altura, Wyler já é cineasta imensamente respeitado, tendo vencido seu primeiro de três Oscars de direção por “Mrs. Miniver”. Wyler estava em um ponto de sua carreira em que investiu profundamente em fazer filmes que refletissem o conflito em curso da Segunda Guerra Mundial, principalmente como isso afetava os cidadãos em casa.

Ele fez não apenas “Mrs. Miniver”, longa sobre uma família britânica vivendo durante o bombardeio Blitz em Londres, mas também fez pequeno documentário sobre o lendário avião bombardeiro Memphis Belle.

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Agora que a guerra havia oficialmente acabado, Wyler estava tentando encerrar sua série de filmes de guerra com homenagem empolgante aos veteranos americanos que voltaram para casa e tiveram que se reajustar ao seu novo modo de vida.

Ainda de acordo com “Five Came Back”, Wyler estava em processo de escalação para este filme, e um dos personagens principais seria um homem deficiente. Então, Wyler e o roteirista Robert Sherwood decidiram que seria melhor escalar um veterano realmente deficiente. Imagine esse pensamento progressista em 1946; muito chocante. De qualquer forma, o filme que acabaria levando Harold Russell à imortalidade do Oscar foi “Os Melhores Anos de Nossas Vidas”.

“Os Melhores Anos de Nossas Vidas” é um dos grandes filmes americanos da década de 1940; de três veteranos voltando da guerra, cada um com seus próprios problemas para lidar.

Al (Fredric March) retorna a um antigo emprego bancário para o qual não está emocionalmente preparado e uma esposa e filhos com os quais ele mal se conecta; Fred (Dana Andrews) percebe que não consegue manter um emprego normal e que sua esposa não está tão interessada nele agora que ele não é mais um soldado; Homer (Harold Russell) está perfeitamente ciente da maneira como as pessoas comuns olham para ele com pena, e está preocupado de que sua noiva também o veja dessa maneira, agora que ele tem ganchos nas mãos.

Esses três homens cruzam a vida uns dos outros e se ajudam a viver e a crescer nesses desafios do pós-guerra. Considerando que este filme foi lançado em época em que os filmes de guerra eram tipicamente mais preocupados em glorificar a ação das batalhas e valorizar os soldados estadunidenses como nobres heróis, é interessante como uma grande produção de Hollywood focou em mostrar como aquela experiência traumática de guerra se infiltra em sua vida cotidiana como veterano, mesmo que você tenha conseguido escapar dela com a consciência limpa.

No caso de Russell, era bastante aparente que ele não era muito ator e, de acordo com o livro, Wyler realmente teve que trabalhar duro com ele para obter uma atuação viável. Nas palavras de Wyler, ele “se concentrou em orientar seu pensamento mais do que suas ações, porque raciocinei que, se ele estivesse pensando da maneira certa, simplesmente não poderia fazer nada de errado”.

Ao assistir Russell, você pode dizer que ele tem capacidade de atuação limitada; ele é bastante modesto em sua expressão emocional e Wyler fez questão de não lhe dar muitos monólogos.

Contudo, ele tem profundo nível de seriedade e o fato de estar interpretando um personagem com experiência tão semelhante a ele amplifica os momentos em que ele fica tão deprimido consigo mesmo e tão esperançoso em encontrar a aceitação de outras pessoas.

O conhecimento de que ele está falando e canalizando palavras e emoções que ele provavelmente passou por si, de maneira que a maioria das pessoas não poderia realmente relacionar, transforma sua atuação em algo mais memorável.

Harold Russel (centro) recebendo seus dois Oscars (Imagem: ABC)

E como Russel ganhou dois Oscars com uma só atuação?

“Os Melhores Anos de Nossas Vidas” foi extremamente bem no Oscar, aproveitando a onda de enorme sucesso de crítica e bilheteria com a boa vontade das pessoas em destacar a empatia pelos veteranos.

A maior surpresa, de longe, até na época, foi Harold Russell ganhando o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. De acordo com a co-apresentadora do podcast Criterion Now, Jill Blake, os eleitores do Oscar estavam “convencidos de que ele não iria ganhar”, então decidiram criar um Prêmio Honorário por “trazer ajuda e conforto aos veteranos deficientes por meio de filmes” como forma de “agradecer aos veteranos”. Foi a única vez que um ator ganhou um segundo Oscar pelo mesmo trabalho.

Russell considerou isso uma grande honra, mas não o usou como trampolim para uma carreira de ator completa. Ele se sentiu muito mais investido em se tornar um ativista para os deficientes em geral e veteranos deficientes na América, e seu sucesso no Oscar permitiu que ele alcançasse uma plataforma maior para perseguir essa causa.

Ele acabaria por passar o resto de sua vida envolvido na defesa da deficiência, principalmente sendo o Presidente do Comitê Presidencial de Emprego de Deficientes durante quatro mandatos presidenciais completos, bem como co-fundador da organização de defesa AMVETS.

Russell continuou sendo o único ator com deficiência a ganhar um Oscar por 40 anos inteiros, até que Marlee Matlin, que é surda, levou para casa o prêmio de Melhor Atriz por “Filhos de um Deus Menor”.

Passaram-se mais 35 anos antes de Troy Kotsur, que também é surdo, ganhar o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante por “CODA”, que co-estrelou Matlin.

Via Collider

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