Pesquisadoras do Centro de Estudo sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com o Instituto Butantan, fizeram uma importante descoberta: o vírus da zika pode ser eficaz no tratamento de tumores agressivos no sistema nervoso central (SNC). 

Mayana Zatz, diretora do CEGH-CEL, diz que a ideia de associar o patógeno ao câncer cerebral veio da constatação de que ele tem uma preferência pelas células progenitoras neurais dos fetos, que mais tarde se transformarão em neurônios e darão origem ao cérebro. E essas células em muito se assemelham com os tumores do SNC.

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“Explicar o porquê desse mecanismo é algo complexo, mas provavelmente o vírus se adapta melhor ao maquinário das células progenitoras. Ele se replica melhor nelas e as destrói”, afirma Zatz. “A partir disso, decidimos, então, investigar se também atacaria as células-tronco tumorais do cérebro, e a resposta foi positiva. O inimigo virou um aliado”, disse a especialista em entrevista ao VivaBem, do portal UOL.

Segundo Carolini Kaid, pesquisadora do CEGH-CEL, nos cânceres mais agressivos, principalmente os do sistema nervoso central (que, até hoje, não têm tratamento), há uma população de células tronco-tumorais com perfil progenitor, normalmente resistentes à quimioterapia e radioterapia. “Quando o paciente termina as sessões, essas células voltam a crescer e reabastecem o tumor, sendo as responsáveis pela recidiva. O fato de o vírus da zika ter preferência por elas, faz com que as infecte, se replique nelas e as mate. Isso é o que chamamos de efeito oncolítico”, explica.

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Estudo com o zika vírus começou em 2017 e ainda segue em andamento

A pesquisa teve início em 2017 e ainda segue em andamento, sendo feita em etapas. 

Na primeira delas, a ação da cepa brasileira do vírus, produzida pelo Instituto Butantan, foi testada in vitro, com o uso de linhagens de células tumorais que causam câncer em humanos. Três dessas células são embrionárias do sistema nervoso central: uma do meduloblastoma e duas do tumor teratoide rabdoide atípico (AT/RT, na sigla em inglês), que afetam, principalmente, crianças menores de cinco anos. Kaid relata que, em três dias, as células tumorais foram totalmente eliminadas. E, segundo ela, as células-tronco neurais sadias não foram infectadas ou destruídas. 

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Na primeira etapa, foram realizados testes in vitro. Imagem: Divulgação / USP

Na segunda etapa, foram realizados ensaios pré-clínicos em camundongos portadores de tumores humanos no encéfalo, alguns já com metástase na coluna. De acordo com as pesquisadoras, detectou-se a redução dos tumores em 20 dos 29 animais tratados com o vírus da zika. Em sete deles (cinco com AT/RT e dois com meduloblastoma), a remissão foi completa. 

Na segunda fase, as pesquisadoras fizeram os ensaios clínicos em camundongos. Imagem: Divulgação / USP

Há registro de casos em que o vírus da zika foi efetivo contra as metástases, eliminando o tumor secundário ou estimulando a sua remissão. “Quando aplicamos nas células de meduloblastoma, em duas semanas já não encontramos mais tumores no camundongo. Nos tumores mais avançados, demorou de três a quatro semanas, mas depois eles também desapareceram. O efeito oncolítico do vírus da zika foi realmente instantâneo”, afirma Kaid.

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No início de 2020, deu-se a terceira etapa do estudo. Três cães com câncer cerebral espontâneo e em estágio avançado, numa fase em que já não havia mais possibilidade de procedimento cirúrgico para retirada, receberam injeções com pequenas doses do patógeno. 

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Em poucos dias, os tumores reduziram até 5 cm³, e os animais apresentaram uma melhora significativa na qualidade de vida. Um deles, que já estava em pré-coma, conseguiu, inclusive, ficar em pé, comer e beber água. Os outros dois puderam voltar a fazer atividades normais, como correr e se alimentar sozinhos. Mas, como o câncer deles era extremamente grave, houve regressão depois de um tempo. “Apesar disso, esse teste foi muito importante, pois nos mostrou que os animais não tiveram nenhum efeito colateral causado pelo vírus, nenhuma infecção sistêmica”, explica Zatz. “É como se tivéssemos dado uma injeção de vitamina, o que só comprova a segurança do tratamento. Outra boa notícia é que não houve destruição dos neurônios maduros”.

Kaid também comemora o fato de ter sido possível estender a sobrevida dos cães. Na condição em que estavam, tinham expectativa de vida de 20 dias antes de serem eutanasiados, mas um deles, após a aplicação, chegou a viver mais 5 meses.  A cientista celebra também o fato de ter havido uma participação do sistema imunológico. “Essa viroterapia tem essa vantagem. Ela, além de destruir diretamente o tumor, ativa o sistema imune, de modo que ele começa a reconhecer que tem algo errado e ajuda no combate”. 

Os resultados do estudo foram publicados nas revistas científicas mundiais Cancer Research, da Associação Americana de Pesquisa Sobre o Câncer (em abril de 2018 – sem a terceira fase), e na Molecular Therapy, em março do ano passado.

Estudo clínico em humanos ainda não tem data para acontecer

Em razão da pandemia da Covid-19, os ensaios em cachorros precisaram ser interrompidos, mas logo serão retomados. Agora, com um novo protocolo veterinário estabelecido, a meta, segundo as pesquisadoras, é testar diversas dosagens, iniciando já com uma mais elevada e em uma amostra maior de animais. 

O próximo passo é o estudo clínico em humanos. Em um primeiro momento, os testes serão feitos em crianças com câncer que estejam em cuidados paliativos, ou seja, quando nenhum tipo de terapia tem mais eficácia no combate à doença. 

Mas, para que isso aconteça, a equipe precisa de dinheiro para produzir um patógeno limpo, sem risco de contaminação, e, a partir dele, desenvolver uma terapia avançada baseada na ação do vírus da zika. Também será necessária a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa ).

“Estamos promovendo um financiamento coletivo através do site Só Vaquinha Boa e, em relação à autorização da Anvisa, recentemente, houve uma renovação das leis para terapias avançadas e isso abriu uma brecha, a RDC338 – artigo 13, que prevê o uso emergencial de medicamento não passível de registro. Como já temos toda essa prova de conceitos em camundongos e cães, isso nos possibilita usá-la. Só precisamos conseguir uma reunião com a agência para sabermos quais são as exigências”, explica Kaid.

Segundo Renato Astray, diretor do Laboratório Multipropósito do Instituto Butantan, a entidade está se organizando para produzir o vírus para os testes em humanos. “O material que temos hoje é de altíssima qualidade e muito provavelmente já poderia ser utilizado. Eu teria bastante segurança em fazer isso, mas precisamos que a Anvisa nos confirme ou indique as modificações necessárias”, afirma Astray.

Para ele, a possibilidade de empregar vírus para tratar alguns tipos de câncer é algo muito promissor. “É o que tem de mais quente na área de terapias avançadas. O que se percebe na biologia é que muitos vírus têm propensão a se multiplicar em células de linhagem tumoral, porque nelas, ao mesmo tempo em que encontram receptores, não encontram resistência. Com base nisso, podemos programar uma terapia antitumoral em uma célula específica que está sendo o problema. Há um campo enorme a ser explorado”.

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