Eu sei, “mais um filme sobre ‘Cinderela’“. Entre animações, live actions e até série de TV, a talvez “princesa mais famosa dos contos de fadas” raramente tem um descanso e é constantemente reapresentada ao público, na maioria das vezes sem novidades e quase sempre atrelada à imagem proposta no clássico pela Walt Disney Productions, lançado em 1950. Afinal, o que há de novo para explorar na icônica fábula de Charles Perrault e como renová-la aos tempos atuais?
Talvez a adaptação mais satisfatória em questão de renovação até os dias de hoje tenha sido ‘Uma Garota Encantada’ (2004), estrelado por Anne Hathaway, que misturava humor sátiro à história e aos contos de fadas em geral e com canções icônicas dos anos 1980. É dessa fonte que Kay Cannon resolve beber para sair da “mesmice Disney” e renovar de forma perspicaz o clássico. A diretora não tem medo de levar ao filme o melhor do acervo, pois a produção mescla bem a comédia da série ’30 Rock’ com o clima contagioso através do musical, tal como a trilogia ‘A Escolha Perfeita’.
O pontapé inicial da renovação começa na personagem em si. Tal qual a princesa original, a protagonista agora interpretada de forma muito carismática por Camila Cabello quer uma vida melhor, mas não através da realeza ou riquezas, e sim pelo próprio espaço. Ao invés de exibir um belo vestido em um baile glamoroso, ela quer ser uma “mulher de negócios” e vender os próprios trajes. A nova premissa por si só já é interessante e traz o conto apropriadamente aos tempos atuais, pois venhamos e convenhamos: Cinderela sempre foi querida do público, porém nunca foi considerada um símbolo feminista e determinado tal qual Mulan, Moana ou Mérida.
De qualquer forma, Cabello é uma Cinderela moderna muito carismática e de fácil conexão com o público. Tal qual a atuação nos clipes de ‘Liar’ e ‘Havana’ na carreira como cantora, ela consegue ser engraçada na medida certa e impactante na medida certo quando é preciso em cena. A estreia como atriz é muito boa e bem-vinda, e pode ser o pontapé inicial para uma carreira promissora em Hollywood.
Nicholas Galitzine não impressiona atuando como Príncipe Robert, porém não compromete o novo recorte e desenvolvimento do personagem. Tal qual Ella (verdadeiro nome da princesa), ele também está fatigado do tradicionalismo real e dos costumes monarcas. Por mais que deseje ser Rei, ele não tem interesse em arranjar uma esposa a princípio e anseia mais por um significado para a vida do que governar. A conexão com a protagonista ao longo filme, ainda bem, é desenvolvida de forma gostosa e o ator britânico faz boa dupla com Cabello.
O maior destaque da produção, no entanto, é Idina Menzel como Vivian, a “madrasta má”. Além de provar novamente (afinal, ela é a Elza de ‘Frozen’) ser uma das melhores vozes da atualidade, ela amplia a história de uma das vilãs mais icônicas da história dos contos de fadas. A personagem, em determinado momento, explica o motivo de ser como é e traz ao público através da canção original ‘Dream Girl’ como é difícil ser vítima do sistema tradicional e o quão árduo é ser uma mulher em meio a uma sociedade patriarcal. Ao lado de, praticamente, todo o elenco feminino, ela protagoniza os momentos mais críticos do filme e que abrilhantam ainda mais a renovação proposta.
Aliás, a mudança nos personagens coadjuvantes também ocorre de forma a modernizar a história. Todos, sem exceção, são diferenciados, principalmente as irmãs de Cinderella, interpretadas por Maddie Baillio e Charlotte Spencer – que não são más em momento nenhum a com personagem, apenas são influenciadas pela mãe.
A adição de novas peças ao conto é da mesma forma bem-vinda, tal como Pierce Brosnan como Rei Rowan, que acha na “escrotice” e a num jeito “babacão” a personificação do machismo. Minnie Driver como Rainha Beatrice e Tallulah Greive como Princesa Gwen poderiam ser desenvolvidas de melhor no roteiro de Cannon para passar uma melhor mensagem de empoderamento feminino, todavia cumprem o objetivo delas em cena.
E, claro, há ele: Billy Porter como Fada Madrinha. Para quem conhece como o ator é por trás das câmeras, é engraçado ver o quão ele trouxe da própria personalidade para o personagem – que, vale ressaltar, é genderfluid (gênero fluído) – no filme. Trajado de um vestido laranja exuberante e ao som de ‘Earth, Wind & Fire’, o artista aparece em apenas um único momento, porém é hilário em toda a sequência com Cabello e brinca com todo o fator “magia sem explicação” dos contos de fada. Um dos únicos erros da parceria entre Columbia Pictures e Fulwell 73 foi não ter dado mais cenas para o premiado artista.
Outro problema – e este incomoda – são os ratos de Cinderela. Os animais foram feitos com CGI péssimo e bizarro, e deve incomodar os olhos do público desde a primeira cena em que aparecem. Para uma produção feita por estúdios de qualidade e distribuída para um dos maiores streamings do mercado, o resultado gráfico é horrível. Felizmente, o trio dublado por Romesh Ranganathan, James Acaster e James Corden é engraçado o suficiente, ainda mais quando se tornam humanos, para fazer com que o telespectador esqueça o trabalho tecnológico precário.
‘Cinderela’ do Prime Video é feliz renovação à “versão Disney”
Em suma, ‘Cinderela’ é uma comédia-musical muito legal de assistir, ainda mais por mesclar hits antigos com atuais. mashup ‘Rhythm Nation/You Gotta Be‘, que mescla o melhor de Janet Jackson com Des’ree, é um dos exemplos bem feitos, visto que as letras encaixam perfeitamente com o sentimento dos personagens. Menzel destrói (no sentido positivo) no cover de ‘Material Girl‘, de Madonna, enquanto o elenco todo surpreende ao performar ‘Am I Wrong‘, hit de 2014 da dupla Nico & Vinz. O casal do filme, claro, tem um momento romântico com ‘Perfect‘, do Ed Sheeran, enquanto a costumeira celebração no fim de filmes do gênero fica por conta de ‘Let’s Get Loud‘, da Jennifer Lopez.
O investimento maciço nas músicas é notavelmente maior do que nos poucos cenários da produção, que são simples e até um pouco repetitivos, todavia a fotografia que mescla locais luxuosos da realeza com o campo rural é charmosa o suficiente – afinal, não é um blockbuster.
Enfim, ‘Cinderela’ entrega um longa cômico, direto e (apesar das desnecessárias polêmicas) para toda a família. E diferente do filme dirigido por Kenneth Branagh em 2015, que tem méritos por trazer clássico da Disney à vida real, a produção do Prime Video é mais adequado aos tempos modernos e renova a ideia de uma conformada camponesa que teve a vida transformada por magia para uma mulher determinada que, apesar das dificuldades, não tem medo de ir atrás dos objetivos.
Ansioso para assistir a nova versão do clássico conto de fadas? Em ‘Cinderela’, a cantora Camila Cabello viverá a personagem título, com Billy Porter (‘Pose’) interpretando a Fada Madrinha, Idina Menzel (‘Frozen’) a “madrasta má”, Vivian, e Pierce Brosnan (‘007 – Um Novo Dia Para Morrer’) como o Rei Rowan. A comédia-musical tem roteiro e direção de Kay Cannon (‘New Girl’).
O filme estreia no Amazon Prime Video nesta sexta-feira (3). Confira abaixo mais informações sobre a produção com sinopse e trailer oficiais:
“Camila Cabello é Cinderela, uma jovem que sonha em sair da casa de sua madrasta e abrir sua própria loja de vestidos, e nessa busca por sua independência ela vai encontrar também o amor.”
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