Há uma lenda urbana que persiste por décadas a fio de que ‘Duna‘, obra-prima da lenda Frank Herbert lançada em 1965, nunca poderia ser adaptada de forma satisfatória para uma produção cinematográfica ou televisiva. Há muitos motivos, claro, porém as 600 páginas, em média, extremamente detalhadas de um universo minuciosamente criado – sem contar o primor cult, porém falho que foi o live action de 1984, nas mãos de David Lynch – já endossam o argumento de forma suficiente.

Ao menos para os “Duna-fãs”, somente uma mente visionária e um pouco quanto ousada tal qual o protagonista Paul Atreides seria capaz de tentar produzir tal feito. A tentativa do diretor Alejandro Jodorowsky, considerada “o maior filme que nunca foi feito”, sucumbiu ao deserto proposto pela lenda urbana e coube a um ascendente Denis Villeneuve a missão de “dar cara a tapa” e arriscar o nome para dar vida à aclamada obra. Felizmente, o cineasta tem bagagem o suficiente para o feito.

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Tal qual ‘O Senhor dos Anéis’ de Peter Jackson no início do milênio, ‘Duna’ não tem medo de ser um filme de fantasia que flerta com o pop. Não somente pelo elenco altamente conhecido com rostos atualmente disputados da indústria, mas também por valorizar mais o fator emocional da trajetória dos personagens e os relacionamentos do que o conflito político e a guerra em si.

Verme de areia de Arrakis em Duna de Denis Villeneuve
Verme de areia de Arrakis em ‘Duna’, de Denis Villeneuve. Imagem: Divulgação/Warner Bros.

Por ser uma obra complexa e desnivelada, e que definitivamente irá exigir mais um ou dois filmes para encerrar a proposta, o diretor opta por levar o público a “um passeio no deserto” e na beleza das paisagens extraterrestres do que simplesmente criar um épico de guerra futurista – mas aí é que está o maior acerto no quesito sci-fi: a apresentação do conceito. Ao longo de 2 horas e 30 minutos, Villeneuve não se importar de explicar a passos curtos detalhes do universo, exibir linguagens diferenciadas e seres anormais. Inclusive, ele insiste que você aprenda.

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Logo, por mais que ‘Duna’ tenha um elenco de peso e seja, sim, um romance poético e belo atrelado às emoções e a trajetória dos personagens, o longa jamais deixa de ser uma ficção científica – o que deve ser uma boa notícia para os fãs da obra de Herbert e do gênero, porém algo complicado de engolir ao público em geral. Aliada à uma fotografia fenomenal de Greig Fraser (que lembra muito o trabalho dele em ‘Star Wars: Rogue One’) e uma trilha sonora divina e digna de adoração feita por Hans Zimmer, a produção beira à perfeição técnica em vários sentidos.

Seja na construção técnica de edição e mixagem de som, nas sequências no belo e vasto deserto tanto pela manhã quanto a noite, ou mesmo na caracterização dos personagens e nos impressionantes vermes gigantes, o filme de Villeneuve é um primor de efeitos especiais e tenta ao máximo respeitar e abordar todo o material possível da obra original, ao mesmo tempo em que a adapta para o público geral e a deixa mastigável. Em suma, toda a produção por trás das câmeras supera o também magnífico trabalho de atuação e roteiro.

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Timothée Chalamet como Paul Atreides e Rebecca Ferguson como Lady Jessica. Imagem: Chiabella James/Warner Bros
Timothée Chalamet como Paul Atreides e Rebecca Ferguson como Lady Jessica. Imagem: Chiabella James/Warner Bros

Um pecado de Villeneuve, no entanto, é o de arrastar o segundo ato mais do que deveria. Tal qual ‘Blade Runner 2049’, ‘A Chegada’ e ‘Sicario’, o diretor não chega a perder o tom, mas levemente desfavorece o roteiro e a famigerada “jornada do herói” para destacar a produção do universo sci-fi e o conflito psicológico – que, parando para pensar, são as bases da carreira do cineasta. A valorização técnica da construção do ambiente é algo comum em longas do gênero e não chega a incomodar, claro, mas é notável perceber que algumas cenas de Chani (Zendaya) foram colocadas apenas para mostrar o rosto da atriz em tela – que, já aviso de antemão, aparece menos de 4 minutos no filme.

Mesmo assim, ‘Duna’ não chega a ser em nenhum momento tedioso, apesar ser extremamente lento no desenvolvimento em certas sequências. Vale ressaltar que, por ser comprovadamente o começo de uma iminente franquia, Villeneuve foge da típica elaboração de uma trajetória em três atos e praticamente faz com que o filme em questão uma grande, longo, extenso e impactante início de uma história. Não se assuste, então, quando o longa encerrar em um momento no qual parece que a trama “irá pegar fogo”. É totalmente proposital.

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De qualquer forma, o diretor mostrou em ‘Duna’ que aprendeu com os erros cometidos por Lynch há 37 anos e aliado à tecnologia dos tempos atuais (além do apoio da Legendary Pictures e Warner Bros.), entregou em ‘Duna’ o melhor que poderia ser feito no quesito técnico de uma obra cinematográfica e na construção de um universo sci-fi. Aproximadamente US$ 165 milhões investidos no filme fizeram muito bem à gigantesca produção, que tal qual ‘A Sociedade do Anel’, pode vir a ser o pontapé inicial de uma franquia que marcará a década e a história da indústria.

Atuações e roteiro são ótimos, mesmo com produção sendo protagonista

Timothée Chalamet as Paul Atreides em ‘Duna’, uma produção da Warner Bros. Pictures e Legendary Pictures. Crédito: Chiabella James/Warner Bros
Timothée Chalamet é o protagonista Paul Atreides em ‘Duna’, produção da Warner Bros. Pictures e Legendary Pictures. Imagem: Chiabella James/Warner Bros

Após a primeira sequência de 10 minutos, um pequeno letreiro dizendo ‘Duna – Parte 1’ poderá ser lido pelo público. Isso é bom e ruim. Bom porque podemos de forma quase oficial esperar por um começo, meio e fim dignos ao que a obra-prima de Herbert merece. No entanto, a indústria cinematográfica é instável, e não é de hoje. Por que prometer algo que pode não cumprir?

O fator em questão sobre uma crise ou não dos cinemas, ou sobre a iminente continuação não é o ponto principal do argumento, mas serve para tecer críticas a proposta de roteiro feito pela trinca de escritores – formada por Jon Spaihts, Eric Roth e Villeneuve -, que não deve agradar a todos. Como citado anteriormente, a produção se desenvolve lentamente e mostra-se, no fim, uma grande introdução a um novo universo cinematográfico e ao desenrolar de uma história que ainda atingirá o ápice.

Fãs do “Dunaverso” e entusiastas de ficções científicas, assim como esse que vos escreve, não devem se importa com o quesito, mas alguns espectadores que estão adquirindo ingresso pelo pouco que viu nos trailers ou mesmo pelo renomado elenco poderão sair da sala de cinema um pouco decepcionados e com aquele sentimento de “pouco ter compreendido” a complexidade da história.

Mas para quem não for um aficionado pelo universo de Herbert e resolver dar umas boas notícias: atuações seguras e de impressionar não faltam na produção. A trama do filme se passa em um futuro longínquo, onde várias casas vivem sob a governança de um poderoso imperador. Líder de uma de uma importante família do universo, o duque Leto Atreides (Oscar Isaac) é convidado a administrar o desértico planeta Arrakis, também conhecido como Duna, local que é única fonte de uma especiaria rara usada para estender a vida humana, chegar à velocidade da luz e etc.

Zendaya como Chani e Timothée Chalamet como Paul Atreides em 'Duna'. Imagem: Warner Bros. Pictures/Legendary Pictures
Zendaya como Chani e Timothée Chalamet como Paul Atreides em ‘Duna’. Imagem: Warner Bros. Pictures/Legendary Pictures

Na tentativa de garantir o seu futuro e o de seu povo, Leto vai para Arrakis com o filho Paul (Timothée Chalamet), um jovem talentoso e destinado a governar, e a concubina Lady Jessica (Rebecca Ferguson), que também é uma Bene Gesserit – ordem religiosa de mulheres bruxas que são chaves para a manutenção do sistema político do universo. Porém, uma reviravolta acaba mudando o rumo da família Atreides e Paul entra em uma jornada de descoberta e sobrevivência pelo deserto em busca dos nativos do planeta, os Fremen, e a menina que aparece repetidamente em seus sonhos, Chani (Zendaya).

Chalamet se agiganta a cada dia que passa na indústria e no cenário pop após atuação impecável em ‘Me Chame pelo Seu Nome, em 2017 – que o rendeu uma nomeação ao Oscar, inclusive. Em ‘Duna’, porém, o ator de 25 anos abraça totalmente o lado heroico e sci-fi, sem medo de parecer exagerado ao ambientar-se no universo e na construção de toda a produção.

Fãs de ‘Duna’ apontam que ele é uma caracterização quase exata do Paul Atreides dos livros, todavia o que mais impressiona é realmente a força de protagonista que ele mostra em tela – algo surpreendente para um ator que, até então, não havia estrelado em megaproduções e aparecia mais no cenário cult “oscar material“.

Casa Atreides reunida: Timothée Chalamet (Paul Atreides), Stephen Mckinley Henderson (Thufir Hawat), Oscar Isaac (Duque Leto Atreides), Rebecca Ferguson (Lady Jessica Atreides), Josh Brolin (Gurney Halleck) E Jason Momoa (Duncan Idaho) em Caladan. Imagem: Chiabella James/Warner Bros
Casa Atreides reunida: Timothée Chalamet (Paul Atreides), Stephen Mckinley Henderson (Thufir Hawat), Oscar Isaac (Duque Leto Atreides), Rebecca Ferguson (Lady Jessica Atreides), Josh Brolin (Gurney Halleck) 3 Jason Momoa (Duncan Idaho) em Caladan; QUE ELENCO! Imagem: Chiabella James/Warner Bros

Os destaques coadjuvantes são vários, porém vale ressaltar o poder veterano de Stellan Skarsgård como o Barão Vladimir Harkonnen e Josh Brolin como Gurney Halleck, mentor de Paul. O primeiro é “puro suco” de vilania e, ainda de forma extremamente caricata, atribui à ‘Duna’ o caráter fantasioso dark necessário, além de um rosto antagonista em vias de fato. Já o segundo mantém a mesma pose de “durão” à lá Thanos, mas permite-se ser mais simpático em tela e de fácil apego com o público, tal qual um “segundo pai” ao protagonista.

E, venhamos e convenhamos, como é bom ver Jason Momoa em tela sendo, bem, Jason Momoa. O papel de Duncan Idaho caiu bem “como uma luva” ao intérprete de ‘Aquaman’ e tem espaço o suficiente para esbanjar carisma, ótima conexão com o personagem de Chalamet e estrelar boas cenas de lutas. É a típica figura que o público irá facilmente se apegar e fincar os olhos na buscando por mais sequências com ela.

Oscar Isaac como Duque Leto é menos memorável como ele faz parecer que é, mas como é bom ver o ator guatemalteco de volta à galáxia após a última trilogia de ‘Star Wars’ – ainda mais com uma leve referência ao personagem dele na saga de George Lucas. Já Rebecca Ferguson como Lady Jessica, concubina do membro real e mãe de Paul, impressiona pelo vigor nas cenas de ação e corridas no deserto, fazendo boa parceria com Chamalet. Para quem não conhece a história original, se mostra uma das personagens mais intrigantes para a vindoura ‘Parte 2’.

Josh Brolin como Gurney Halleckem ‘Duna’, uma produção da Warner Bros. Pictures e Legendary Pictures. Crédito: Chiabella James/Warner Bros
Josh Brolin como Gurney Halleckem ‘Duna’ é um dos melhores destaques coadjuvantes. Imagem: Chiabella James/Warner Bros

Dave Bautista como Glossu Rabban, o sobrinho do Barão, não tem tempo de tela o suficiente para se mostrar a ameaça que pode vir a ser, mas compensa com uma caracterização amedrontadora. Algo diferente de Javier Bardem como Stilgar, líder da tribo dos Fremen em Sietch Tabr. É incrível como o espanhol, mesmo com pouco minutos de destaque, se mostra um verdadeiro “gentleman” até cuspindo de forma grotesca no chão ou desdenhando de um certo momento vivido por Paul e Jessica.

Bom ressaltar da mesma forma o quão gostoso é ver em tela Stephen McKinley Henderson e a eterna musa Charlotte Rampling atuando de forma fervorosa e imersiva, mesmo na casa dos 70 anos. David Dastmalchian, por sua vez, é sempre caricato e quase o mesmo personagem em tela praticamente todos os filmes? Sim, mas e daí? Mesmo sendo apenas um assistente pessoal do Barão Harkonnen, é legal ver o ator aparecendo em grandes projetos – com o Villeneuve, já é o terceiro.

Não vamos esquecer de Zendaya como Chani. Tal qual antecipado pelo próprio diretor em entrevistas prévias, a jovem atriz narra certos pontos, mas mal aparece em ‘Duna’ – 4 minutos, no máximo. No entanto, a personagem é claramente uma peça-chave de toda a obra e deve ser a principal figura, se não a protagonista, de uma vindoura ‘Parte 2’. Seria até injusto qualquer crítico avaliar a performance dela no filme, visto que atende mais como uma participação especial.

‘Duna – Parte 1’ é grandioso e tem potencial para ser algo que marcará a história

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‘Duna’: Zendaya será protagonista de possível “filme 2” – já que apareceu pouquíssimo no primeiro. Imagem: Warner Bros. Pictures/Legendary Pictures/Reprodução

Épico de ficção científica ambicioso – somente pelo fato de ser feito – e contemplativo que pode acabar sendo considerado a realização mais monumental de Villeneuve até então, ‘Duna’ pode não ser para todos. Mas, para aqueles que se encontram totalmente imersos no universo criado por Herbert, e para aqueles que derem a chance de imersão, uma experiência cinematográfica sublime o aguarda.

Pode parecer redundante falar que a produção é grandiosa em vários aspectos – é, afinal, um filme de Villeneuve – mas no caso de ‘Duna’, tamanho e beleza não poderiam ser feitos de outra forma. E mesmo com apelo à história e os personagens crescerem diante do desenvolvimento em diversos momentos, o filme ainda sim é um épico sci-fi que tem as características mais primordiais para um longa do gênero, complementado por magníficas fotografias e trilha sonora (obrigado, Hans Zimmer, obrigado!).

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O trabalho do diretor junto à Warner Bros. e a Lionsgate permitiram uma experiência em que a leitura do livro pode realmente atrapalhar a apreciação do filme. E, verdade seja dita, é o tipo de adaptação que precisa ser tratada como tal, e não como uma tentativa de cosplay e imitação qualquer da obra. Críticas de fãs mais incisivos com certeza chegarão, claro, mas verdade seja dita: a honra e o legado de ‘Duna’ nunca foram tão bem retratados fora do livro.

Lindamente filmado, realizado com imaginação e com uma clareza narrativa que escapou a David Lynch, o ‘Duna’ de Villeneuve ainda se beneficia por ser apenas contado pela metade. A decisão pode ser controversa, porém ao mesmo foi sábia, pois terá espaço para trabalhar a obra com detalhismo necessário e também terá tempo de apresentar a trama do século passada a uma nova geração.

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Esplêndido, ‘Duna’ tem potencial para ser ‘O Senhor dos Anéis’ dessa década. Imagem: Warner Bros./Divulgação

O que quer que se possa dizer sobre ‘Duna’ parece apropriadamente monumental. É um feito impressionante e um mergulho em um mundo ricamente projetado que parece ao mesmo tempo antigo e futurista. Olhando objetivamente para o que foi montado, você não poderia desejar uma melhor realização em tela. Por fim, o épico de ficção científica é instigante, emocionante e de tirar o fôlego, com um elenco renomado que cumpre a tarefa de apresentar o longa com potencial para marcar uma geração, tal qual fez ‘O Senhor dos Anéis’.

Em suma, ‘Duna’ é, de fato, um dos maiores e mais ambiciosos espetáculos blockbusters feitos para o cinema até hoje.

Ah, e fica a dica: aos fãs “nível extremo” da obra original de Herbert, há uma versão da crítica do novo ‘Duna’ escrita pelo intrépido Renato Mota (leia aqui), que aborda detalhes minuciosos do universo e faz comparações da produção de Villeneuve com o livro original de 1965 – e vale demais dar aquela lida. Confira o trailer e sinopse oficiais abaixo:

“Inspirado na série de livros de Frank Herbert, Duna se passa em um futuro longínquo. O Duque Leto Atreides administra o planeta desértico Arrakis, também conhecido como Duna, lugar de única fonte da substância rara chamada de “melange”, usada para estender a vida humana, chegar à velocidade da luz e garantir poderes sobrehumanos. Para isso ele manda seu filho, Paul Atreides (Timothée Chalamet), um jovem brilhante e talentoso que nasceu para ter um grande destino além de sua imaginação, e seus servos e concubina Lady Jessica (Rebecca Fergunson), que também é uma Bene Gesserit. Eles vão para Duna, a fim de garantir o futuro de sua família e seu povo. Porém, uma traição amarga pela posse da melange faz com que Paul e Jessica fujam para os Fremen, nativos do planeta que vivem nos cantos mais longes do deserto.”

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