Uma investigação do Ministério Público do Trabalho (MPT) trouxe à tona denúncias sobre graves violações de direitos humanos cometidas pela Volkswagen em uma fazenda no sul do Pará durante a ditadura militar e o começo do periodo democrático. A montadora foi convocada para uma audiência no próximo dia 14, em Brasília (DF), para tratar sobre as acusações de crimes, cometidos entre os anos de 1974 e 1986.

Os promotores do MPT coletaram depoimentos de vítimas que trabalharam na Fazenda Vale do Rio Cristalino, também conhecida como Fazenda Volkswagen, em Santana do Araguaia. Os sobreviventes alegam ter sido submetidos a condições degradantes no local e à violência extrema, incluindo ameaças de morte, tortura e espancamentos fatais. A fazenda em si — com quase 140 mil hectares — era utilizada pela Vale do Rio Cristalino, uma subsidiária da montadora germânica, com o objetivo de criar gado para venda.

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A iniciativa da Volkswagen no Pará foi fruto de um programa de subsídios oferecido pela ditadura militar. À época, o regime tinha um plano para povoar a Amazônia a qualquer custo e oferecia às empresas empréstimos com juros negativos, entre outros benefícios fiscais, para se instalar na região. Já os trabalhadores chegavam às terras do sul paraense em busca de emprego e terra.

“O governo ofereceu subsídios, deduziu impostos… Foi algo fantástico para os empresários”, explica à agência EFE o padre Ricardo Rezende Figueira, coordenador de um grupo de pesquisa sobre trabalho escravo na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor de A escravidão na Amazônia, livro que aborda o caso da VW.

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Desde o início dos anos 1980, Figueira recolheu mais de 600 páginas de documentação sobre a questão. Ele diz que, à época, como coordenador da CPT (Comissão Pastoral da Terra), entidade vinculada à Igreja Católica, denunciou publicamente o caso, mas não recebeu atenção.

Vista aérea de Santana do Araguaia
Vista aérea de Santana do Araguaia, onde ficava a fazenda Volkswagen (Bruno Freitas/Wikimedia/CC)

Trabalhadores eram submetidos a escravidão por dívidas

O esquema da Volkswagen para atrair trabalhadores aos confins do Pará durante a ditadura era muito simples: salários lucrativos e terrenos no futuro. As tarefas, porém, eram desumanas. Muitos trabalhadores eram forçados a cortar a floresta adentro em condições extenuantes com o objetivo de abrir caminho para o gado da montadora alemã. Se, por algum motivo, alegavam condições de trabalho melhores ou tentavam fugir, eram punidos de forma brutal, sendo “amarrados a árvores e espancados durante dias”, segundo relata o procurador do trabalho Rafael Garcia Rodrigues, principal promotor do caso.

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“Aqueles que tentaram entrar na floresta nunca mais voltaram”, disse Garcia Rodrigues à agência de notícias AFP. “Havia apenas histórias de que eles haviam sido mortos. Os trabalhadores foram sistematicamente e fisicamente abusados.”

De acordo com o MPT, havia na fazenda cerca de 300 trabalhadores contratados e uma centena de funcionários informais que eram submetidos a condições de escravidão por dívidas. Segundo relatos, eles não ficavam livres do emprego até que pagassem os débitos contraídos com o empregador quanto a despesas relativas a transporte, trabalho e lazer. Os trabalhadores ainda eram forçados a comprar alimentos na loja da fazenda a preços exorbitantes. Alguns chegaram a morrer de malária, segundo Garcia Rodrigues, por não ter acesso a cuidados médicos.

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Mas há detalhes ainda mais assustadores. Segundo o relatório, a fazenda mantinha uma pequena tropa de guardas armados para vigiar os trabalhadores. “Um trabalhador tentou fugir, mas os pistoleiros o pegaram. Como punição, sequestraram sua esposa e a estupraram”, diz o texto, citando o depoimento de três testemunhas. “Outro trabalhador tentou fugir e foi baleado na perna. Outro ficou amarrado e nu.”

Volkswagen se nega a comentar, mas leva “acusações a sério”

Na audiência do próximo dia 14, a Volkswagen tentará chegar a um acordo com os promotores do MPT. Caso não assuma a responsabilidade no caso e repare os danos causados, a empresa pode enfrentar processo. Em nota oficial, a montadora alemã afirmou que “levou as acusações muito a sério”, mas se recusou a comentar com maiores detalhes “em razão de possíveis procedimentos legais”.

Esta não é a primeira montadora se vê envolta com acusações de crimes de direitos humanos no Brasil. Desde 2017, a Volkswagen reconhece sua cooperação com a ditadura militar (1964-1985), tendo conduzido uma investigação interna que gerou um amplo relatório conduzido pelo historiador Christopher Kopper.

“A Volkswagen foi irrestritamente leal ao governo militar brasileiro e compartilhou os seus objetivos econômicos de política interna”, disse Kopper, à época, em comunicado da própria empresa. “A correspondência com a diretoria em Wolfsburg evidenciou até 1979 um apoio irrestrito ao governo militar que não se limitava a declarações de lealdades pessoais.”

Em 2020, a companhia concordou em pagar R$ 36 milhões em compensação por colaborar com o regime no rastreamento e identificação de líderes de esquerda e líderes sindicais, que foram então detidos e torturados. O termo foi assinado com o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Estado de São Paulo e a Procuradoria do Trabalho. Boa parte do dinheiro foi destinado aos trabalhadores que foram vítimas de violações aos direitos humanos.

Fachada antiga da Volkswagen em São Bernardo do Campo
Fachada antiga da Volkswagen em São Bernardo do Campo (Volkswagen do Brasil/Divulgação)

Montadora empregou nazista condenado

O histórico da Volkswagen durante a ditadura militar, no entanto, não se restringiu a perseguir opositores de esquerda. Durante os anos 1960, a montadora alemã chegou a ter como um de seus funcionários o nazista Franz Paul Stangl, ex-comandante dos campos de extermínio de Treblinka e Sobibor, na Polônia. O episódio foi revelado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) em 2014.

Após fugir de uma prisão na Áustria, Stangl perambulou pela Síria e chegou ao Brasil em 1951, trabalhando para a Volks entre 1959 e 1967. Por aqui, o criminoso chegou a montar, a serviço da ditadura militar, um setor de monitoramento e vigilância na unidade de São Bernardo do Campo para espionar empregados.

Franz Stangl, nazista que trabalhou para a Volkswagen na ditadura
Franz Stangl: nazista trabalhou oito anos para a Volkswagen durante a ditadura (Hans Vanderweff/Wikimedia/CC)

Stangl acabou sendo preso em fevereiro de 1967 pela Polícia Federal após ter sido rastreado pelo escritor e caçador de nazistas Simon Wiesenthal. À época, o chefe da Volks no Brasil, Friedrich Wilhelm Schultz-Wenk, ex-membro do Partido Nazista, negou que a empresa soubesse sobre o seu passado — algo que a montadora continua a afirmar ainda hoje.

Extraditado para a Alemanha Ocidental, Stangl foi condenado a prisão perpétua em 22 de outubro de 1970 pela morte de aproximadamente 900 mil pessoas. Além de ter comandado dois campos de extermínio de judeus, em Treblinka e Sobibor, o ex-policial também havia sido superintendente do Aktion T4, um programa conduzido pelos nazistas para assassinar pessoas com problemas físicos e mentais. Sobre seus assassinatos, disse que estava “cumprindo obrigações”.

Stangl morreu de infarto em 28 de junho de 1971 aos 63 anos, durante uma entrevista na prisão de Dusseldorf (Alemanha Ocidental).

Crédito da imagem principal: holwichakawee/Shutterstock

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