Recentemente, cientistas criaram uma camada ocular de pele de porco e conseguiram restaurar a visão de 14 pessoas. No início deste ano, o primeiro transplante de coração de porco para um humano foi realizado e, pouco antes, em 2021, um transplante de rim de porco modificado também foi feito; o que segundo a equipe médica foi um procedimento de sucesso. 

Esses são só alguns casos em que este animal vem colaborando para o avanço da medicina. Mas, afinal, por que os porcos são tão utilizados na medicina? A saúde está realmente avançando a partir disso? Quais as implicações a respeito da proteção animal? Até que ponto é legalmente permitido? 

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O motivo de os porcos serem os animais escolhidos para a medicina, mais especificamente no uso de órgãos, é o fato de sua anatomia ser muito semelhante a dos humanos – fígado, rins e coração são os principais órgãos parecidos com os nossos.  

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Outro ponto, conforme reportagem do Jornal da USP (Universidade de São Paulo), é que os suínos alcançam a idade e peso de um adulto bem rápido, além de não serem uma espécie com risco de extinção, que é o caso de alguns primatas – macacos também já foram usados em testes, mas justamente pela grande semelhança com humanos, um risco biológico maior de transmissão de doenças foi notado, o que fez com que a comunidade científica deixasse de usá-los em testes da medicina.

“Por que porcos, se sabemos que somos muito mais próximos geneticamente dos macacos? O problema é que macacos se reproduzem pouco, tem poucos filhotes e muitas espécies ameaçadas que correm risco de extinção. Os porcos, ao contrário, têm uma gestação de menos de quatro meses, alcançam maturidade sexual com cinco a seis meses e produzem muitos filhotes. E um porco de 70 ou 80 quilos tem os órgãos do tamanho dos de um humano, e com funções semelhantes”, explicou a professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências (IB) da USP Mayana Zatz, em entrevista à Luíza Caires, da Rádio USP

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porcos
Porcos. Imagem: Mark Agnor/iStock

Qual a importância do xenotransplante? 

Xenotransplante é o nome que se dá ao procedimento de transplantar um órgão animal para humanos. O método é considerado um avanço não apenas para a tecnologia científica em si, mas por significar esperança para as filas imensas de quem espera por um doador de órgãos.  

De acordo com dados do Ministério da Saúde, só o Brasil tem mais de 50 mil pacientes aguardando por um transplante, a maioria espera por um rim; córnea e fígado estão em segundo e terceiro lugar, respectivamente. O levantamento ainda mostrou que a fila de espera cresceu 27% de agosto de 2019 para cá (junho de 2022). 

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Segundo reportagem da revista Piauí, em 2021, mais de 15 mil pacientes entraram na fila de espera por um rim; 4,7 mil receberam transplante e 3 mil morreram esperando – 7,1 mil saíram da lista. A reportagem ainda destaca que a pandemia agravou este cenário. Em dez anos, a lista de espera, no caso do rim, dobrou. Apenas em 2021, foram 4,2 mil vidas perdidas nas filas de todos os órgãos

transplante de órgãos
Transporte de órgãos. Imagem ilustrativa: shutterstock/Dan Race

Casos de transplantes a partir de órgãos de porcos 

O recente caso da criação de um implante feito de pele de porco que restaurou a visão de 14 pessoas ganhou notoriedade na comunidade científica e nas redes sociais. A nova técnica é considerada menos invasiva e não requer pontos ou condições e equipamentos muito especializados para ser aplicada. O método resolve a escassez de doação de córneas (o segundo órgão mais esperado na lista). O procedimento foi um sucesso e não teve reações adversas. Saiba mais aqui. 

Outros dois casos de sucesso foram os transplantes de rins realizados em setembro de 2021 nos EUA. Em um, feito em um paciente de 57 anos com morte cerebral, os órgãos se mostraram completamente viáveis durante 77 horas após a cirurgia. O outro, de acordo com o diretor do Instituto de Transplantes Langone, da Universidade de Nova York, Robert Montgomery, o procedimento foi melhor do que a equipe imaginava. O médico ainda afirmou que aquilo se parecia com qualquer outro transplante de rim que ele já realizou de um doador vivo. Confira detalhes aqui. 

O maior feito, contudo, foi o recente transplante do primeiro coração de porco para um humano. A cirurgia foi um marco na história da medicina e ocorreu também nos EUA. Com isso, eles demonstraram que um órgão animal geneticamente modificado pode funcionar dentro do corpo humano e sem rejeição imediata. Após três dias do procedimento, Bennett continuou vivo e “passando bem”, de acordo com informações do hospital responsável. Veja aqui! 

Transplante de coração. Imagem ilustrativa: Shutterstock

Porém, é aí que começam os desafios! Já é sabido que um dos maiores problemas em transplantes de órgãos é a aceitação do organismo – tudo que entra de diferente em nosso corpo, por mais que seja para o bem, pode ser atacado pelas nossas células de defesa, que acreditam ser uma ameaça. Assim, o risco é o mesmo para xenotransplantes e, pode ter um agravante ainda maior, que é o risco de levar bactérias do animal para o ser humano, embora já exista métodos contra isso. 

O caso do paciente do coração de porco foi um desses. O homem faleceu dois meses depois devido o órgão estar infectado com porcine cytomegalovirus, um tipo de vírus suíno. A presença do vírus foi detectada 20 dias após a cirurgia, mas a quantidade era tão baixa que não foi considerado um “erro de laboratório”. 

Vale destacar aqui que os órgãos de porcos transplantados são geneticamente modificados, ou seja, não são quaisquer porcos. Geralmente os animais fazem parte de um rebanho especial que, inclusive, removem o gene que poderia gerar uma resposta humana que rejeitaria o órgão. David Bennett, de 57 anos, era um paciente que, devido outras complicações, não poderia receber um órgão humano, por isso ele se voluntariou ao xenotransplante. O procedimento era experimental. 

“Aos poucos os porcos tem sido usados em humanos, o pâncreas tem sido utilizado na produção de insulina, além das válvulas do coração e córneas também [em outros procedimentos]. Mas a grande dificuldade são órgãos maiores. Desde a década de 1980, imunologistas têm trabalhado no sentido de evitar a rejeição. O grande salto foi dado com a tecnologia de CRISPR, que permite editar os genes com mais facilidade”, disse Zatz, explicando o avanço da tecnologia neste sentido e acrescentando que, a partir disso e métodos de clonagem, podemos chegar ao “porco ideal” para transplantes em humanos. 

Dito isso, a única distância que separa o uso de porcos para o fornecimento ilimitado de órgãos resolvendo a escassez global é a rejeição, por ora. 

Martelo de tribunal
Imagem ilustrativa: Kuzma/iStock

O que diz a lei de proteção animal sobre o uso de porcos?

Aqui chegamos em um dos pontos mais polêmicos sobre o avanço da ciência. Desde já deixo claro que há uma linha muito tênue no tema e que, a partir de perspectivas e visões diferentes, as divergências podem ser infinitas. 

O uso de animais para testes de cosméticos é condenável por diversas instituições. A Humane Society International (HSI), organização não governamental internacional de proteção animal, é uma das que luta diariamente contra a prática e que ganhou destaque ao divulgar uma forte campanha intitulada #SaveRalph contra o uso de animais como cobaias de laboratório. No Brasil, o curta-metragem foi largamente compartilhado nas redes sociais através da divulgação da People for the Ethical Treatment of Animals (PETA).

De acordo com a coordenadora em bioética do Fórum Animal, Karynn Capile, em entrevista ao Olhar Digital, embora existam leis gerais e normas específicas – principalmente no que diz respeito a animais e cosméticos -, no caso dos xenotransplantes nada ainda está muito claro. “Xenotransplantes é uma coisa bem nova, então um dos problemas é justamente a legislação. A gente não tem muita orientação sobre isso. O que a gente tem é uma legislação específica para experimentação animal que é geral”, explicou.

Segundo Capile, no Brasil temos, a nível federal, o art. 225 sobre a vedação da crueldade, que desvinculou o tratamento dos animais não-humanos de um valor econômico e reconheceu um valor próprio a esses seres, vedando as práticas que coloquem os animais em extinção e os submetam à crueldade.

Temos também a chamada Lei Arouca (Lei 11.794), que é própria para a experimentação animal e estabelece procedimentos para o uso científico de animais. Essa lei criou o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) que, desde 2014, colocou em vigor a Resolução Normativa n° 18, por exemplo, que diminui ou substitui o uso de animais por métodos alternativos em 25 tipos de testes e experimentos – a RN 18 é apenas uma das resoluções.

A norma vale para empresas e instituições de pesquisa públicas e privadas em todo o país. Contudo, a nossa legislação não proíbe completamente e permite, por exemplo, a comercialização de produtos que ainda usam o método.

Além dessas, também há a Lei 9.605 (federal), que aborda crimes ambientais e que no art. 32 condena atos de abuso e maus-tratos aos animais, incluindo ações em testes e experimentos para quais existam métodos alternativos.

ratos de laboratório
Ratos de laboratório usados em testes. Imagem ilustrativa: shutterstock/Egoreichenkov Evgenii

Alguns estados brasileiros, inclusive, aderiram independentemente leis que proíbem a prática, são eles: Paraíba; Pará; Paraná; Amazonas; Mato Grosso do Sul; Pernambuco; Minas Gerais; Distrito Federal; Rio de Janeiro; Santa Catarina e São Paulo. 

Para os que defendem o uso de animais para teste de fármacos, tratamentos, estudos em diferentes áreas da biologia e outras possíveis contribuições para a saúde coletiva, os benefícios muitas vezes justificam o uso e desconforto animal – alguns citam que as alternativas nem sempre oferecem o cenário necessário para o objetivo da experiência. 

Para ativistas e simpatizantes da causa animal, os fins não justificam os meios e é necessário se apoiar em outras opções para o avanço de uma ciência que não prejudique ou cause sofrimento animal – instituições levantam aqui a forte influência da indústria (principalmente no caso dos cosméticos). 

Um caminho destacado por instituições é o investimento em políticas públicas voltadas para saúde que diminuam as altas taxas, por exemplo, de doenças cardiovasculares – o problema é a causa de morte número 1 em todo o mundo e, parte delas, estão ligadas à alimentação e condições de vida, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).

“São 25 métodos alternativos que são obrigatórios no Brasil, porque eles foram reconhecidos pelo Concea. Eles se encaixam legalmente como uma opção conforme a Lei. Se tiver métodos alternativos, é crime usar animais. [porém] a maioria é alternativa de teste de segurança, como de toxicidade. Então qual é o problema? O problema é que esses métodos são poucos ao pensar na dimensão dos testes em animais e do que já existe validado cientificamente”, afirmou Karynn, ressaltando uma informação importante aos pesquisadores.

“Os pesquisadores podem usar métodos científicos que já tenham uma validação científica (com estudos e resultados publicados fora do Brasil). Não é proibido usar método alternativo que não esteja validado pelo Concea, poucas pessoas entendem isso. Mas é obrigatório utilizar os já validados.”

A partir de maio de 2022, também entrou em vigência uma portaria publicada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) que possibilita que empresas dispensem o uso de animais em testes de controle de qualidade de produtos biológicos (por exemplo, vacinas) de uso veterinário. Tal mudança regulatória tem o potencial de evitar a morte e sofrimentos de uma grande quantidade de camundongos, aves e outros animais; além de reduzir os custos e a burocracia. Com a publicação dessa norma, o Brasil se iguala a outros países, como Estados Unidos e Japão, que já haviam adotado essa medida. 

A coordenadora de bioética ressaltou que entende que testes alternativos podem nem sempre colaborar para um cenário ideal, como naqueles que pesquisadores precisam de um organismo vivo para entender o processo e interação de um fármaco. “Isso é a coisa mais difícil de reproduzir.” No entanto, nós já temos métodos que alcançam essa simulação.

“Nós já temos sistemas que simulam o funcionamento de órgãos. Até para a interação, que é mais difícil, já temos uma possibilidade muito promissora que são os Organ-on-a-chip, eles simulam funcionamentos de células de certos órgãos e mostram a interação entre fígado e rim, ou intestino e fígado, então não é algo impossível. Mas claro que não existe uma resposta certa sobre o tema.”

Imagem ilustrativa de Organ-on-a-chip (órgão em chip): shutterstock/Phonlamai Photo

Há diferenças entre testes em animais para cosméticos e para tecnologias na medicina?

Em termos de lei, não há exatamente uma distinção entre animais que são usados para testes de cosméticos e produtos de higiene e beleza e animais usados para o avanço ou opções na medicina, como no caso dos xenotransplantes.

“Os cosméticos vão ser regulamentados pela Anvisa porque são produtos comerciais que serão vendidos para a população. Neste sentido, os cosméticos vão ter uma especificidade maior, mas do ponto de vista da experimentação animal não tem diferenças. Isso porque os testes serão feitos com animais que são criados em biotérios em condições de confinamento da mesma forma que se faz com animais para testagem de medicamentos, por exemplo. A diferença é apenas o tipo de produto, que será vendido para um tipo de lugar, mas na parte dos animais é parecido”, destacou Capile.

Vale salientar que toda empresa ou universidade que usa métodos de testes em animais possue uma Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA) que avalia até que ponto é necessário a utilização deles, levando em consideração, inclusive, o sofrimento – as equipes são obrigadas a conter um veterinário, um biólogo e uma pessoa envolvida com a proteção animal. Contudo, a especialista pontuou que nem sempre temas éticos são questionados, como o quanto o uso é justificável para a sociedade.

Além disso, conflitos de interesses acabam prejudicando e impedindo uma análise mais criteriosa voltada de fato para o bem-estar animal, já que muitas comissões acabam sendo formadas por funcionários da própria empresa.

Imagem: shutterstock/3rdtimeluckystudio

“Essa comissão deveria fazer questionamentos éticos como ‘isso é necessário para a sociedade?’, ‘qual a importância disso para a vida das pessoas?’ ou, ainda que seja necessário, ‘será que é aceitável e justificável submeter os animais a este sofrimento para resolver outro problema?’. Só que o que acontece é que os membros não são pessoas capacitadas em questões de ética. Não fizeram filosofia ou bioética, são pesquisadores. Aí eles se deparam com essas questões complexas, como o caso do xenotransplante, e não há elementos para a avaliação ética. Eles focam em questões de metodologia.”

Outro ponto de conflito é a burocratização, que acaba gerando estresse entre as comissões, os pesquisadores e a instituição. Os profissionais também não recebem financeiramente para a atuação, sendo um trabalho voluntário.

“É claro que não dá para falar isso de forma generalizada, existem CEUAs que têm pessoas preocupadas com a causa animal, mas na minha experiência, que lido com isso há muito tempo, já participei de CEUAs, conheço pessoas do meio, isso é muito raro”, complementou Capile.

O desenvolvimento de alternativas para substituição dos testes em animais também faz parte do avanço da medicina com a composição da ética. Questões como as econômicas também permeiam o tema, deixando-o ainda mais complexo. Usar animais pode ser – em panorama superficial de custo imediato – mais barato, embora a longo prazo o manejo de certos animais criados para testes saia até mais caro – devido a cuidados como manutenção e produção de lixo biológico. Dentro disso há no entanto uma questão cultural, considerada a maior barreira quando comparada a financeira ou tecnológica.

“Imagine um cachorro, que temos mais proximidade doméstica, criado em laboratório, nasceu lá e fica em uma gaiola. Ele passa a vida dele sendo levado para lá e para cá, recebendo injeção, corte, incisão, medicamentos, componentes que machucam, às vezes ele é colocado junto com outros animais que ele não se dá bem, têm brigas. A agressividade entre ratos, por exemplo, é muito comum. É uma vida de sofrimento, pensar que animais que são criados para isso não sofrem [só porque foram criados para tal] é uma ingenuidade muito grande”, opinou, adicionando os porcos na comparação.

“A gente tem um conflito de interesses no caso do xenotransplante, a sociedade tem um problema de falta de órgãos e existe a possibilidade do xenotransplante que está se mostrando promissor. A solução parece boa, mas existem conflitos éticos nesta solução; trazer os porcos a existência só com esse objetivo, que causará sofrimento, é um problema ético. Então precisamos de soluções que não incorram nisso. Não vamos conseguir resolver um problema causando outro. O processo de doação de órgãos no Brasil é desorganizado, podemos investir e melhorar o sistema de captação de órgãos, por exemplo. A impressora 3D também é um caminho, ainda não está perfeita, mas o xenotransplante também não está.”

Imagem: shutterstock/ProStockStudio

Vale lembrar que, em 2012, a Declaração de Cambridge sobre a Consciência em animais mudou (e continua mudando) conceitos e visões de diversos públicos. O documento, um estudo de neurocientistas que foi assinado e proclamado publicamente em Cambridge, no Reino Unido, na presença de diversos especialistas, incluindo Stephen Hawking, afirma que evidências confirmam que muitos animais (incluindo o porco) são seres sencientes, ou seja, tem consciência, sofrem e sentem dor.

“As pessoas acham que são à favor de testes, mas quando fazem um exercício percebem que pelos próprios princípios não são. Eu sou contra, mas entendo que é uma questão delicada, temos uma cultura que funciona assim então no meu entendimento temos que usar os mecanismos que existem para tentar dissolver isso até que não exista mais, como usar o Concea e as leis da forma mais otimizada possível. Representante animal precisa ser crítico e firme e acionar a comunidade quando preciso. Para quem é à favor, eu entendo algumas falas, mas temos tecnologias impressionantes para todo tipo de coisa. Por que a gente não teria para [outras formas de] pesquisas científicas relacionadas aos animais?”, finalizou a especialista.

Vale reforçar que o objetivo aqui não é condenar ou estabelecer um certo e errado, mas apenas mostrar os avanços na medicina, explicar a escolha no uso de porcos e de que forma a tecnologia de xenotransplantes pode ajudar. Da mesma forma, o intuito também é abranger outros tipos de tecnologia e avanços que igualmente cabem no tema, como o uso de métodos alternativos, aplicação de leis e considerações e contrapontos de cada área.

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