Além dos sci-fis lendários, Ridley Scott sabe e muito bem entregar épicos filmes históricos. Mais do que isso, o nome por trás de ‘Gladiador‘, ‘Cruzada’ e ‘Êxodo: Deuses e Reis’ entende como valorizar excelentes performances em tramas baseadas em fatos. Bem, ao adaptar ‘O Último Duelo’, livro homônimo de Eric Jager, o lendário diretor tenta escancaradamente ganhar o primeiro Oscar da carreira com uma narrativa medieval chocante e brutal, porém poderosa e atual o suficiente de forma a impactar a sociedade contemporânea.

A história é baseada em eventos que supostamente teriam ocorrido na França do século 14, em plena época da Guerra dos Cem Anos, e gira em torno de dois amigos: o cavaleiro Jean de Carrouges (Matt Damon) e o escudeiro Jacques Le Gris (Adam Driver), que por vários motivos são separados pela guerra. Apenas o primeiro é convocado para o conflito e, quando retorna, sua mulher (Jodie Comer) revela ter sido estuprada pelo outro.

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O escudeiro, visando manter o legado do nome que construiu, nega a acusação. O personagem de Damon, então, apela para o rei da França, usando a posição como veterano de guerra para pedir autorização para um duelo até a morte – que entraria para a história como o último legalmente sancionado na Europa.

O ULTIMO DUELO
Novo filme de Ridley Scott passa mensagem poderosa em meio à era medieval. Imagem: 20th Century Studios/Divulgação

Porém, se pensa que a produção é apenas Damon e Driver lutando até a morte (por um Oscar) em uma arena medieval com lanças, espadas em meio à precária França do século 14, você está absolutamente errado. Claro, todo o arquétipo arcaico envolto, da ação de guerra por territórios à base de arqueiros e cavaleiros que lutam bravamente está lá, e muito bem feito. Mas Scott prefere utilizar o fator apenas como pano de fundo para destacar através da edição dividida em três partes as fortes atuações e a narrativa por trás da verdade, unicamente contada por Marguerite de Carrouges, interpretada por Comer.

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Contracenado ao lado de três nomes gigantes e premiados da indústria, a protagonista de ‘Killing Eve’ se agiganta de uma forma tamanha que praticamente toma o longa para si. A atriz, ignora o possível aspecto de “dramalhão” e “chororô” que ‘O Último Duelo’ tenta emplacar no início do terceiro ato para crescer de forma orgânica no quesito sofrimento. Ao querer provar a todo custo que sofreu abuso sexual, a personagem bebe da fonte dos cinco estágios do luto descritos pela psiquiatra suíço-americana Elisabeth Kübler-Ross, contudo troca a “aceitação” por “revolta” e em nenhum momento sequer cai no pranto exacerbado em busca de justiça.

Comer também faz muito bem o uso das feições na produção. Épicos medievais, de vez em quando, são recheados de performances teatrais à lá drama grego, mas a atriz é mais pé no chão e não perde o tom em nenhum momento, mesmo quando não é a verdade dela que está sendo contada – o que prova, querendo ou não, que os três relatos do longa sempre a trataram como uma mulher excepcional. Afinal, faz sentido: sabido que vive em uma sociedade machista, patriarcal e totalmente tradicional, a personagem foca na busca mais por justiça do que vingança.

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Jodie Comer é gigante em ‘O Último Duelo’ e mostra que quer o Oscar. Imagem: 20th Century Studios/Divulgação

A atriz trabalha de forma tão esplêndida em ‘O Último Duelo’ que, por pouco, não apaga as atuações de Ben Affleck, que interpreta o conde libertino Pierre d’Alençon, Driver e Damon. O ator de ‘Perdido em Marte’ (filme também dirigido por Scott, vale ressaltar) age de forma boa e segura como um cavaleiro devoto ao Rei e a Deus, e também marido de Marguerite, que quer “tirar o nome da lama” acima de tudo. Nos últimos cinco anos, Damon optou por trabalhar apenas em produções estrategicamente selecionadas e que geraram repercussão na mídia, e ao coestrelar e coescrever o filme em questão, ele claramente mostra o quão cresceu como artista – e isso é magnífico.

Porém, ao se designar no papel de Jean de Carrouges, Damon exibe muito e apenas força, mas pouco dinamismo em tela – o que pode muito bem ter sido uma escolha do roteiro, bem… dele, para valorizar os outros personagens. Driver, por sua vez, é uma força da natureza crescente em Hollywood e talvez o melhor ator que tenha aparecido de forma concisa na indústria nos últimos seis anos. O eterno Kylo Ren da nova trilogia de ‘Star Wars’ atua bem como um cretino e sádico libertino que, por saber o quão inteligente é, não tem medo de conquistar o que almeja.

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Na busca do Oscar, Driver faz de tudo com o seu personagem em ‘O Último Duelo’. Ele é sexy, forte, destemido, lê e fala em latim (o que impressiona demais) e luta, o que mostra dinamismo suficiente para cativar o público em tela mesmo sendo considerado o vilão da história desde o primeiro minuto de filme. E mesmo quando não é o destaque em cena, o ator não tem medo de “roubar a vez”, seja brincando com a respiração ou correndo/caindo de forma desengonçada. Resumindo: ele performa com foco nas premiações, que sem sombra de dúvida irão notá-lo.

Adam Driver impressiona mais uma vez em atuação vilanesca. Imagem: 20th Century Studios/Divulgação

Já Affleck aparece menos do que os trailers revelam, mas mesmo assim impressiona. É engraçado ver ele atuando como um conde adúltero e beirando ao cômico, mas funciona em cena e em toda a trama da produção, principalmente pelo clima envolvente “melhores amigos” com Driver que entrega ao público. Destaque também para Harriet Walter, mãe do personagem de Damon. Mera coadjuvante ranzinza e antipática em praticamente todo o longa, a atriz encontra redenção instantânea em uma cena que cura cerca de 30 segundos que serve como “cereja do bolo” para a mensagem que o roteiro e a direção quiseram passar.

A produção

Equipado com uma infinidade de apresentações finas, Scott oferece outro banquete visual deslumbrante em ‘O Último Duelo’. Lenda que deveria ser muito mais reconhecida do que é no setor, o diretor foi angariado aqui com uma equipe de técnica “pesada” por trás dele – composta por Pearl Street Films, TSG Entertainment e, claro, Scott Free Productions – e confiou mais duas funções a dupla Damon-Affleck, vencedora do Oscar pelo roteiro de ‘Gênio Indomável’: a de produzirem o filme com ele e escreverem o argumento com Nicole Holofcener (indicada ao Oscar por ‘Poderia Me Perdoar?’).

Aliás, fato curioso: Scott dividiu a produção em três partes ao longo de 152 minutos e cada uma foi escrita por um dos roteiristas. Cada uma das três verdades (a de Jean, a de Jacques e a de Marguerite – escrita exclusivamente por Holofcener) são bem montadas o suficiente para ao mesmo tempo concordarem e discordarem entre si.

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Ambientação e excelente produção marcam ‘O Último Duelo’. Imagem: 20th Century Studios/Divulgação

Ou seja, a história até momentos antes da luta entre os protagonistas homens é basicamente a mesma, porém varia em detalhes minuciosos e grandes revelações. A direção de Scott não deixa em nenhum momento a “peteca cair”, sabe? O longa está longe de ser repetitivo e, a cada verdade revelada, o público busca entender mais a trama e descobrir quem está falando a verdade.

Talvez, mas só talvez, o único deslize da direção de Scott aqui seja o fator revelação, que é explicado logo de uma vez com um simples destaque em “a verdade” no capítulo de Marguerite. Ao avaliar a produção como um todo, o detalhe não faz diferença alguma, mas o marketing dos trailers e dos minutos iniciais do filme venderam uma ideia de que haveria algum tipo de mistério interligado ao enredo – que ocorre, mas é desembrulhado rapidamente tal qual um episódio de ‘Scooby-Doo’.

Scott, no entanto, compensa com a edição perspicaz que valoriza as “três verdades”, cada uma com suas particularidades, e com todo o fator medieval. Lanças, espadas, armaduras, banquetes reais e muito mais podem ser observados de forma quase real em ambientações que pouco utilizam de tecnologia e efeitos especiais – algo que pode agradar um público que fã de longas do gênero que marcaram os anos 2000, tal qual ‘Gladiador’, Troia’ e ‘Cruzada’.

A mensagem

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Ben Affleck coescreveu, coproduziu e atuou no novo filme. Imagem: 20th Century Studios/Divulgação

Além da produção impecável e de atuações excelente, Scott finaliza ‘O Último Duelo’ com uma mensagem poderosa e contemporânea sobre a falta de credibilidade que a sociedade ainda fornece às mulheres vítimas de abuso. Ao lidar com o aspecto na ambientação medieval, o diretor não tem medo e exagera nos absurdos machistas e patriarcais que a personagem de Comer precisa ouvir e enfrentar – detalhe que pode ser crítica negativa por parte de alguns espectadores, mas vale relembrar que a experiência é um filme que retrata uma época.

Ao declarar ter sido vítima de estupro, Marguerite é abandonada metaforicamente por todos ao redor, mas decide por enfrentar a situação com os escassos recursos que tem na época (e todos, infelizmente, com o aval do marido). Seja em pleno tribunal escutando se alcançou o orgasmo com Jacques Le Gris no momento do abuso sexual ou ouvindo da própria sogra que é “insuficiente” por não cumprir o papel da mulher de ter filhos, a personagem enfrenta as situações com bravura e segue firme em busca apenas de justiça, sem demonstrar medo ou rancor.

A mensagem de perseverança e de enfrentar a absurda situação, no entanto, abre margem para uma conclusão melancólica. Sem oferecer spoilers, claro, mas cabe refletir sobre como Scott finaliza a obra com o tom de desespero em relação às mulheres da época e quase declarando algo, como: “hoje as Marguerites, apesar das ainda existentes dificuldades, têm como enfrentar os abusadores e conquistar justiça, mas a personagem original, por mais que seja ouvida e vença, está numa época em que jamais, de fato, sairá vitoriosa”.

Ridley Scott faz valer a pena ‘O Último Duelo’ – filme que certamente aparecerá nas premiações

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Ridley Scott faz valer a pena ‘O Último Duelo’ – filme que certamente aparecerá nas premiações. Imagem: 20th Century Studios/Divulgação

Com ‘O Último Duelo’, Ridley Scott cumpre o grande desafio de retratar um mundo no qual as mulheres são marginalizadas e destituídas de poder – e, infelizmente, mostrar também que a situação ainda existe nos dias de hoje. O gosto amargo que a poderosa mensagem oferece ao público é envolto também de lutas de espadas, duelos deslumbrantes, narrativa ágil e performances psicologicamente penetrantes do quarteto de protagonistas.

O filme levanta-se contra qualquer ceticismo e entrega um roteiro complexo e matizado à base de performances fenomenais que devem ser estudadas na aula de atuação e algumas das melhores cenas de luta medievais colocadas em tela. Em verdade voz digo que Scott, assim como Comer e Driver, devem aparecer nas nomeações das principais premiações em 2022 pelo trabalho impecável entregue no longa da 20th Century Studios.

Resumindo, venha pela direção de Scott em um épico medieval , mas fique pelo desempenho extraordinariamente sensível de Comer, Driver e os outros atores. O público pode notar que a ação não é o foco da produção, mas acaba sendo uma novela de outra época ricamente interessante para a atualidade.

A estreia de ‘O Último Duelo‘ está marcada para 14 de outubro no Brasil, um dia antes do lançamento nos Estados Unidos (EUA). Confira sinopse e trailer oficiais abaixo:

20th Century Studios estreia “O Último Duelo”, a emocionante história de traição e vingança do cineasta visionário Ridley Scott contra a brutalidade da França do século 14. O épico histórico é um drama cinematográfico e instigante que explora o poder onipresente dos homens, a fragilidade da justiça e a força e coragem de uma mulher disposta a permanecer sozinha no serviço da verdade. Com base em eventos reais, o filme desvenda suposições antigas sobre o último duelo sancionado pela França entre Jean de Carrouges e Jacques Le Gris, dois amigos que se tornaram rivais. Quando a esposa de Carrouges, Marguerite, é violentamente atacada por Le Gris, uma acusação que ele nega, ela se recusa a ficar em silêncio, avançando para acusar seu agressor, um ato de bravura e desafio que coloca sua vida em perigo. O julgamento de combate que se seguiu, um duelo extenuante até a morte, coloca o destino de todos os três nas mãos de Deus.”

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