Valorizar mulheres que, de alguma forma, inspiram outras. Esse era o objetivo da pesquisadora Mônica Antunes Ulysséa quando decidiu os nomes que daria a algumas das novas espécies de formigas que ela descobriu em sua pesquisa de doutorado, publicada na revista científica Zootaxa. Entre as homenageadas, que se destacam nas mais diversas áreas, estão a socióloga e política Marielle Franco, a escritora Clarice Lispector e a jogadora de futebol Miraildes Maciel Mota, mais conhecida como… Formiga!

Mônica é bióloga com mestrado em Zoologia pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e doutorado em Sistemática, Taxonomia Animal e Biodiversidade pelo Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), onde é pesquisadora de pós-doutorado.

Mônica Antunes Ulyssea, cientista que descobriu 14 novas espécies de formigas e escolheu seus nomes em homenagem a mulheres que considera inspiradoras. Imagem: Arquivo pessoal

Ela explica que a inspiração para os nomes das novas espécies surgiu naturalmente: “Quando me vi com 14 novos nomes de formiga para escolher, não foi dificil pensar nessa homenagem. Ela brotou do que eu sou, e eu sou mulher, experiencio as questões relacionadas ao meu gênero, mais do que umas mulheres e menos que outras, mas todas essas questões me tocam”, declarou em entrevista ao Olhar Digital.

“Escolhi mulheres que, de alguma forma, me tocam, me emocionam por sua escrita poética e combativa, por sua luta, sua política, suas ideias, seu brilhantismo, sua coragem, suas bravuras, enfim, por meu afeto”. Segundo a bióloga, além da escolha pessoal, alguns dos nomes foram sugeridos por outras mulheres. “Perguntei também por sugestões em algumas rodas de mulheres, assim conheci a paulistana Virginia Leone Bicudo e a paraibana Margarida Maria Alves, e então fui compondo essa homenagem para dar visibilidade a todas essas mulheres incríveis, que na realidade somos todas nós”.

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Combate à desigualdade de gênero na ciência

Essa também foi uma forma que a pesquisadora encontrou de trazer representatividade feminina à ciência, uma área tão marcada pela desigualdade de gênero. “O laboratório e a universidade são partes da sociedade, de modo que nesses ambientes encontramos também toda a pluralidade de questões levantadas em outros segmentos da sociedade”.

Mônica lembra que, em sua época de graduação (entre 2002 e 2007), o assunto não era tratado com a relevância merecida. Pouco se falava, por exemplo, sobre a questão da maternidade para mulheres cientistas e suas implicações no currículo. “Não havia licença maternidade para as pesquisadoras bolsistas, algo conquistado tem pouquíssimo tempo, bem como o espaço no currículo lattes para informar seu período de afastamento por conta da maternidade”, explica. 

Temas considerados “polêmicos”, mas muito presentes na sociedade como um todo, também eram ignorados no campo da ciência. “Não se falava tão abertamente sobre os assédios sexual e, principalmente, moral que sofremos constantemente”, disse Mônica. “Hoje a USP, por exemplo, tem o USP Mulheres, um escritório que acolhe essas questões e, nesses casos, nós precisamos de mulheres nos acolhendo. É muito mais difícil fazer esse tipo de denúncia para um corpo docente majoritariamente homem”. 

Outro aspecto menosprezado no ambiente acadêmico até o início do século, segundo a pesquisadora, era a saúde emocional/mental e os vieses da nossa sociedade que levam a termos poucas mulheres comandando laboratórios de pesquisas ou assumindo cargos administrativos mais altos na estrutura universitária. 

A pesquisadora durante seus estudos de análise das 3,2 mil amostras pertencentes a instituições nacionais e internacionais. Imagem: Arquivo pessoal

“Todas essas questões vêm sendo discutidas de forma mais ampla fora da academia e, por isso, na academia também”, acredita Mônica. “Eu entendo que falarmos sobre tudo isso já é um passo à frente, mas, como mulher, eu urjo por mudanças ativas e não passivas. Temos que pôr em prática esse mundo mais equânime que tanto queremos desde já!”

Segundo levantamento do Instituto de Estatística da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), menos de 30% dos pesquisadores no mundo são mulheres. No Brasil, as mulheres ocupam apenas 14% das posições na Academia Brasileira de Ciências. Embora sejam maioria na graduação, nos cursos de especialização, no mestrado, no doutorado e no pós-doutorado, as mulheres são minoria entre os docentes nas instituições de ensino superior.

Para Mônica, isso dá margem a uma discussão profunda sobre privilégios em uma sociedade estruturalmente machista e patriarcal. “Se sabemos disso, se é um dado comprovado, bem como sabemos que nossos vieses inconscientes de gênero fazem com que um homem com o mesmo currículo que uma mulher seja preferido para uma vaga simplesmente pelo fato de ser homem, por que não abrir vagas específicas para a contratação de mulheres? Acho que está na hora de discutirmos isso mais abertamente, afinal representatividade importa”.

Formigas são essenciais à biodiversidade

Segundo Mônica, a formiga tem grande importância no ecossistema. “As formigas participam de diversos processos ecológicos que ocorrem no dia a dia da vida em um ambiente. Elas, por exemplo, ajudam a controlar a população de outros animais através da predação, são dispersoras de sementes, atuam na polinização e na decomposição, revolvem o solo e servem como alimento para muitas outras espécies”.

De forma “injusta”, esses insetos passaram a ser tratados como nocivos, o que a bióloga explica ser decorrente da ação humana. “A formiga como praga só vem depois da prática da monocultura com base em toneladas de agrotóxicos que diminuem drasticamente a biodiversidade de um local, desequilibrando todos os processos ecológicos que ali ocorrem”.

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As espécies descritas em sua pesquisa fazem parte do gênero Hylomyrma. Mônica teve acesso a 3,2 mil exemplares fornecidos por 33 instituições (10 nacionais e 23 estrangeiras), com destaque para o acervo de formigas do museu de zoologia da USP, uma das grandes coleções existentes para o grupo no mundo.

O processo envolve um intenso exercício de examinar cada exemplar na lupa, parte por parte (cabeça, tórax, abdome, pernas, cerdas, coloração), identificando características que se repetiam de forma idêntica ou muito similar entre as amostras. 

“Assim, vamos agrupando os exemplares. No final, para alguns eu consigo associar nomes de espécies já descritas pela ciência, enquanto que para outros não. E essas é que são consideradas novas espécies”, explica Mônica.

Dessa forma, foram descobertas 14 formigas que ainda eram desconhecidas, ou seja, que tinham características diferentes das demais e que não estavam presentes na literatura científica. A etapa seguinte foi a nomeação das espécies. 

Veja a lista de mulheres homenageadas pela pesquisadora

  1. Hylomyrma adelae: Espécie em homenagem à educadora, feminista, ensaísta e poeta boliviana Adela Zamudio, pioneira na luta contra o racismo e a discriminação às mulheres na América Latina.
  1. Hylomyrma dandarae: Espécie em homenagem a Dandara dos Palmares, que foi casada com Zumbi dos Palmares, atuou na resistência contra escravidão praticada no Brasil Colônia e se suicidou para não retornar à condição de escrava.
  1. Hylomyrma jeronimae: Espécie em homenagem à brasileira Jerônima Mesquita, mineira, enfermeira e líder feminista. No dia 30 de abril, data de seu nascimento, é comemorado o Dia Nacional da Mulher, em reconhecimento à sua importância na luta contra a desigualdade de gênero no país.
  1. Hylomyrma lispectorae: Espécie em homenagem à ucraniana naturalizada brasileira Clarice Lispector, jornalista, escritora e um dos principais nomes da literatura brasileira do século 20.
  1. Hylomyrma macielae: Espécie em homenagem à jogadora de futebol baiana Miraildes Maciel Mota, mais conhecida por seu apelido: Formiga. Única futebolista a ter participado de sete edições dos Jogos Olímpicos e de todas as edições da Copa de futebol feminino, é símbolo de superação: mulher, negra, nordestina e integrante da comunidade LGBTQIA+. 
  1. Hylomyrma margaridae: Espécie em homenagem à paraibana Margarida Maria Alves, defensora dos direitos humanos e das trabalhadoras rurais. Ela foi a primeira sindicalista mulher do Brasil.
  1. Hylomyrma mariae: Espécie em homenagem à paraense Maria do Espírito Santo da Silva, extrativista, ambientalista e sindicalista, reconhecida por sua luta em prol da preservação da floresta Amazônica, do extrativismo sustentável e em defesa da reforma agrária. 
  1. Hylomyrma marielleae: Espécie em homenagem à carioca Marielle Francisco da Silva, mais conhecida como Marielle Franco, socióloga e política que defendia o feminismo, os direitos humanos, a população LGBTQIA+ e os moradores de comunidades carentes, até ser assassinada a tiros em 2018.
  1. Hylomyrma mitiae: Espécie em homenagem à amiga pessoal de Mônica, Mítia Heusi Silveira, “uma mulher incrível e inspiradora”, responsável por desenvolver projetos com fungos e besouros, que trabalhou na Fundação Nacional do Índio (Funai) e foi vítima de feminicídio aos 26 anos.
  1. Hylomyrma primavesi: Espécie em homenagem à engenheira agrônoma Ana Maria Primavesi, austríaca radicada no Brasil, que foi pioneira nos estudos dos solos em florestas tropicais e revolucionou a visão sobre a agricultura ao considerar o solo um organismo vivo, lançando assim as bases para a agroecologia e agricultura orgânica. 
  1. Hylomyrma virginiae: Espécie em homenagem à socióloga paulistana Virginia Leone Bicudo, que foi pioneira no estudo das relações raciais no Brasil. Ela adentrou na psicologia à procura de respostas para as causas do sofrimento, sendo a primeira não médica a ser reconhecida como psicanalista.
Todas as espécies descobertas por Mônica fazem parte do gênero Hylomyrma. Acima, um exemplar de uma Hylomyrma reitteri, espécie já descrita anteriormente. Imagem: Fabiano Albertoni – cedida pela pesquisadora Mônica Ulyssea

Além dessas, as outras três espécies descritas pela pesquisadora são: Hylomyrma wachiperi (em homenagem ao povo indígena Wachiperi), Hylomyrma lopesi (que homenageia o professor Benedito Cortês Lopes, carinhosamente conhecido por “Benê”, que apresentou a Mônica “o mundo encantador das formigas e da ciência”) e Hylomyrma peetersi (uma homenagem ao biólogo belga Christian Paul Peeters, que colaborou com sua pesquisa de doutorado).

Para Mônica, estudos como esse contribuem para outros trabalhos ecológicos, que vão procurar entender as relações e interações de cada ser em determinado ambiente. Ela destaca que a taxonomia, como ciência de base, dá fundamento para outras pesquisas, “mas não recebe a atenção adequada e os investimentos necessários – principalmente em meio aos atuais cortes orçamentários da ciência nacional”.

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