No processo de surgimento da vida na Terra, a transformação da química para a bioquímica em nosso planeta foi um dos desenvolvimentos mais surpreendentes que aconteceram no universo. É tão raro que até agora, não temos absolutamente nenhuma evidência de qualquer forma de vida em qualquer outro lugar do cosmos — apesar de nossa busca incessante.

Para explicar o que exatamente pode ter acontecido, a resposta está na correlação de pesquisas de ponta em astronomia, biologia, química e geologia. 

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Um estudo recente, em fase de pré-print e aceito para publicação pelo The Astrophysical Journal, propõe que a chave estaria em uma molécula autorreplicante, envolvendo uma interação complexa de meteoritos ricos em hidrogênio, atividade vulcânica, lagoas quentes e um precursor improvável para a vida: o cianeto de hidrogênio.

Teria a vida na Terra surgido de um gás hoje altamente tóxico e mortal? Imagem: Chinnapong — Shutterstock

Vida na Terra começou muito diferente do que é hoje

Após sua formação há cerca de 4,5 bilhões de anos, a Terra imediatamente sofreu inúmeras colisões, entre as quais uma grande o suficiente para arrancar um pedaço do nosso planeta e criar a Lua. Depois disso, as coisas se acalmaram o suficiente para que a vida pudesse aparecer, entre 4,5 bilhões e 3,7 bilhões de anos atrás.

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Essas formas de vida primitiva eram certamente muito diferentes das modernas. Isso porque as formas de vida modernas requerem três macromoléculas: DNA, RNA e proteínas. Muito resumidamente: nosso DNA armazena informações, o RNA transmite essas informações para a fabricação de proteínas, e as proteínas fazem a maior parte do trabalho de manter a vida funcionando — inclusive, replicando DNA.

Esse é um sistema tão interconectado que é improvável que tudo tenha aparecido de uma só vez em sua forma moderna. No entanto, a vida primitiva ainda precisava desempenhar as funções básicas: armazenar informações, replicar-se e catalisar outras reações químicas.

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É possível que o RNA sozinho seja capaz de fazer os três – definitivamente, não tão eficientemente quanto o combo DNA-RNA-proteína que temos hoje, mas pode ser um ponto de partida plausível para a vida. Mas, de onde vem o RNA autorreplicante?

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Cientistas criam modelo da Terra primitiva

Para desvendar esse e outros mistérios relacionados à origem da vida, os autores do novo estudo desenvolveram um modelo complexo da Terra primitiva, tomando como ponto de partida a colisão maciça que criou a Lua. Nesse momento, a superfície da Terra esfriou a partir do rescaldo, com os oceanos apenas começando a se formar e os continentes começando a emergir. Aqui, ainda era um lugar bem inóspito.

Nos primórdios, a Terra sofreu inúmeras colisões, entre as quais uma grande o suficiente para arrancar um pedaço do nosso planeta e criar a Lua. Nessa fase, com os impactos de meteoritos, surgiu um elemento crucial: o hidrogênio. Imagem: Paopano — Shutterstock

Meteoritos que sobraram da formação do sistema solar constantemente bombardeavam a jovem Terra, e vulcões ativos cobriam a face do planeta. Esses impactos de meteoritos, por mais desagradáveis que fossem, entregaram um elemento crucial: o hidrogênio. O hidrogênio é o elemento mais leve, por isso não permanece por muito tempo na atmosfera, a menos que fique ligado a outras moléculas.

Enquanto os meteoritos estavam fornecendo suprimentos frescos de hidrogênio para a atmosfera da Terra, esses vulcões estavam expelindo enormes quantidades de dióxido de carbono. Além disso, os oceanos eram muito mais quentes do que são hoje e estavam constantemente evaporando na atmosfera. Por último, as aberturas submarinas estavam vazando metano.

À medida que todas essas moléculas se acumulavam na atmosfera, a radiação ultravioleta do Sol forneceu energia para tornar as coisas mais agitadas, dando origem ao cianeto de hidrogênio. O gás venenoso, que pode significar morte certa para a vida moderna, pode ter sido a molécula mais importante no desenvolvimento dessa mesma vida.

Como o cianeto de hidrogênio pode ter formado RNA

Conforme explica o site Space.com, a propriedade chave do cianeto de hidrogênio é que ele reage consigo mesmo. E como a vida pode ser considerada uma versão muito complexa de produtos químicos interagindo consigo mesmos, cianeto de hidrogênio parece um ponto de partida intrigante. 

Além disso, o cianeto de hidrogênio reage com outras moléculas, como o formaldeído, para produzir outras biomoléculas interessantes. Essas biomoléculas, por sua vez, são os blocos de construção de nucleobases, ribose e nucleotídeos, que então passam a formar RNA.

Em seu trabalho, os pesquisadores descobriram que o cianeto de hidrogênio pode chover da atmosfera em pequenos lagos quentes, onde o composto começa sua dança molecular com outras moléculas que ocorrem naturalmente. 

Segundo descobriram os cientistas, durante um período de 100 milhões de anos, cerca de 4,4 bilhões de anos atrás, a quantidade de cianeto de hidrogênio chovendo em lagoas foi suficiente para criar altas concentrações de adenina, um dos componentes do RNA.

Eventualmente, quando os meteoritos pararam de cair, os níveis de hidrogênio na atmosfera foram reduzidos. “Mas até lá, adenina suficiente pode ter sido criada para iniciar a formação de fios de RNA, o que pode ter desencadeado a exploração da autorreplicação e os estágios iniciais da vida”, explicaram os pesquisadores.

Embora essas formas originais de vida sejam consideradas altamente primitivas se comparadas à vida moderna, os fios de RNA autorreplicantes e catalisadores já são moléculas extremamente complexas, e seu surgimento necessariamente inclui muitas reações precursoras.

Não importa o que, mas algo especial definitivamente aconteceu na Terra há muito tempo, e pode ter começado com cianeto de hidrogênio.

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