O pântano Lindow Moss, na Inglaterra, assim como diversos outros similares Europa afora, já foi antro de restos humanos. Em 1983, Andrew Mould encontrou no local um crânio, por exemplo.

Ele estava tão bem conservado, que ainda havia restos do cérebro em seu interior. A família de Mould vivia do corte de turfa e, desde criança, ele frequentava os pântanos e achava comum encontrar restos. Mas este pareceu anormal a ponto de ele comunicar a polícia.

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A partir daí, duas investigações paralelas surgiram. Isso porque a polícia achou que o crânio pertencia a Malika de Fernandez, mulher que foi assassinada por seu marido, Peter Reyn-Bardt, que, após a descoberta do crânio, confessou o crime.

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Só que, após a datação do crânio, os arqueólogos iniciaram sua própria investigação, pois o resto humano tinha mais de 1.600 anos.

A explicação científica para a perfeita conservação do crânio – e até mesmo de parte do cérebro e um globo ocular da Mulher de Lindow, como ficou conhecida – é que as profundezas dos pântanos são ácidas e possuem pouco oxigênio, de modo que bactérias e outros micro-organismos não conseguem decompor tecidos orgânicos.

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Sabe-se que o ato de enterrar pessoas em pântanos da Irlanda até a Alemanha desde 2000 a.C. Contudo pesquisadores já encontraram esqueletos datados de 8.500 a.C.

Esses achados se mostraram incomuns aos olhos dos arqueólogos, pois, naquela época, a forma comum de se “livrar” de um corpo era por meio da cremação, com direito a funerais e outros tipos de cerimônias.

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O mais estranho nos corpos encontrados é o fato de a maioria ser de crianças e adolescentes, que se mostravam em forma e saudáveis. Muitos estavam nus e suas roupas eram enterradas em locais próximos no próprio pântano.

As investigações forenses realizadas nesses corpos mostraram que suas mortes foram cruéis e violentas, dando luz ao que pode ter acontecido com eles e quem eram eles antes desse fim trágico.

Andrew Mould, após achar a Mulher de Lindow, encontrou mais uma parte humana. O que ele pensou inicialmente ser uma madeira era, na verdade, um pedaço de couro. Analisando melhor, eles conseguiram ver dedos de um pé.

Posteriormente, encontraram uma cabeça inteira e o dorso. O Museu Britânico identificou o morto como sendo um homem de cerca de 20 anos de idade, medindo 1,73 m e pesando 64 kg, que viveu mais ou menos no século 1 d.C.

“O espetacular a respeito dele é que ele quase foi morto por três vezes”, afirmou Miranda Aldhouse-Green, professora emérita da Faculdade de História, Arqueologia e Religião da Universidade de Cardiff, no Reino Unido.

“Ele recebeu uma morte prolongada muito específica por alguém que conhecia a anatomia humana. Ele foi atingido na cabeça com força suficiente para atordoá-lo, mas não o matar. Ele foi então estrangulado e, ao mesmo tempo, teve sua garganta cortada”, explicou a professora.

A forma sádica desta morte acendeu o alerta para os pesquisadores, que começaram a perceber que não se tratava de um simples assassinato.

Ilustração de agricultores da Idade do Ferro (Imagem: Morphart Creation/Shutterstock)

A importância dos pântanos na Idade do Ferro

Enquanto nos dias atuais achamos que os pântanos são lugares vazios e sem tanta importância, naquela época, chamada de Idade do Ferro, era o oposto.

“Eles (pessoas da época) retiravam combustível do pântano, cortando turfa e retirando minério de ferro. Produziam instrumentos e armas, como caldeirões e espadas. Retiravam o musgo e teciam artigos extraordinários com ele. Caçavam as aves que viviam ali. Os pântanos eram lugares ricos e produtivos para as pessoas da Idade do Ferro”, contou Melanie Giles, professora sênior de arqueologia da Universidade de Manchester, na Inglaterra.

Aldhouse-Green foi além ao sugerir que os antigos poderiam consideram os pântanos uma espécie de portal sobrenatural. “Eles têm vapores que saem deles e, às vezes, entram em combustão espontânea. Podem ter odores fortes. Parecem terra, mas não são terra. Podem ter sido compreendidos como sendo portais para o outro mundo e portais para os deuses.”

Giles afirmou que análises detalhadas das vizinhanças do local onde foi encontrado o Homem de Lindow demonstraram que, muito provavelmente, ele estava vivo quando adentrou pela última vez naquele ambiente de passagem.

Usando dados do Sistema de Informações Geográficas para mapear o pântano, os pesquisadores concluíram que o Homem de Lindow foi enterrado na sua parte mais profunda.

Conduzir uma pessoa morta ou atordoada até aquele local teria sido extremamente difícil naquele terreno traiçoeiro. “Como é muito perigoso chegar até aquele ponto, provavelmente ele estava vivo enquanto era transportado”, segundo Giles.

Os detalhes das suas lesões fatais apontam nessa direção. “O assassino era grande conhecedor da anatomia humana e sabia como manter aquela pessoa pairando entre a vida e a morte por muito tempo”, explicou Aldhouse-Green.

“Quando ele foi empurrado com o rosto para baixo contra o pântano, ele ainda estava respirando, pois havia água em seus pulmões.”

Outros sinais disso vêm do estômago do Homem de Lindow. Análises meticulosas de sua última refeição revelaram um prato muito simples à base de cevada, talvez um pouco torrado demais.

“A última coisa que ele comeu antes de morrer foi um alimento realmente muito simples”, diz Sophia Adams, curadora do Período da Idade do Ferro Europeia e da Conquista Romana do Museu Britânico. “Ele comeu o que chamamos hoje de pão na chapa.”

A falecida acadêmica celta Anne Ross, que realizou importantes trabalhos iniciais com o Homem de Lindow, argumentava que esse pão na chapa, feito de cevada e parcialmente queimado, revela algo sobre seu destino.

Entre as classes sacerdotais britânicas daquela era, o pão na chapa era usado em cerimônia muito similar ao jogo dos palitos. As pessoas retiravam pedaços de pão na chapa de um saco e quem tirasse o pedaço queimado e torrado era escolhido como bode expiatório.

E o pão na chapa do Homem de Lindow também continha traços de outra planta denunciadora: O visco. Ross argumentou que isso indica relação com os antigos druidas, que eram conhecidos por realizar rituais de coleta de visco.

Aldhouse-Green destacou que o visco era conhecido na Antiguidade como planta medicinal para distúrbios nervosos e “pode ter sido administrado ao homem de Lindow para acalmá-lo e deixá-lo mais submisso frente à sua morte terrível”.

Outros corpos do pântano também contam últimas refeições incomuns. Um corpo dinamarquês conhecido como Homem de Grauballe é o de um agricultor da Idade do Ferro que viveu em cerca de 390 a.C., no centro da Dinamarca.

Sua última refeição incluiu mais de 60 tipos diferentes de vegetais, amassados em mingau intragável de cereais, ervas com sabor amargo e mais de 13 espécies de grama.

“Você tem muitas sementes e plantas de área bastante ampla reunidas nessa refeição, o que indica muito conhecimento daquele território e sugere que era ritual representado no sacrifício”, pontuou Aldhouse-Green. “Mas você pode interpretar esta última refeição com uma infinidade de formas. Pode também ter sido forma de humilhação.”

O Homem de Grauballe também teve uma substância psicoativa acrescentada à sua última refeição – mas, neste caso, a intenção pode ter sido qualquer uma, menos de acalmá-lo.

Traços de toxinas alcaloides no intestino revelaram que sua última refeição incluiu o esporão-do-centeio, um fungo que cresce nas espigas de cereais como centeio e cevada.

Em doses altas, o envenenamento com esse fungo causa alucinações e efeitos terríveis, conhecidos como Fogo de Santo Antônio. Eles incluem parada circulatória, sensação de queima e perda das extremidades por gangrena.

Mas, nos níveis encontrados no trato digestivo do homem de Grauballe, o efeito teria sido mais suave.

“Ele pode ter causado um comportamento muito estranho logo após a ingestão”, afirmou Aldhouse-Green. “O fungo teria feito com que ele fizesse movimentos desordenados, sentisse muito calor e gritasse. Ele estaria à beira de um fenômeno psicótico extremo e, possivelmente, isso era parte das preliminares rumo ao sacrifício.”

Entre os corpos descobertos nos pântanos, existe alto percentual de pessoas com características físicas diferentes que podem ter chamado a atenção na sua comunidade, segundo Aldhouse-Green.

A Menina de Yde, por exemplo, que viveu dois mil anos atrás e morreu no pântano de Stijfveen, na Holanda, tinha curvatura pronunciada da espinha, que deve ter causado dores crônicas e provavelmente um andar cambaleante.

Outro corpo do pântano holandês da mesma época, a Mulher de Zweeloo, tinha forma de nanismo. E, no Reino Unido, o terceiro corpo antigo encontrado em Lindow Moss (conhecido como Lindow 3º) tinha vestígio de um segundo polegar na mão direita.

“Existe a possibilidade de que as deficiências físicas não fossem exatamente comemoradas, mas, sim, marcadas como algo especial e poderoso, possivelmente associado a ser tocado ou abençoado pela divindade”, sugeriu Aldhouse-Green.

Mas ela salienta que não podemos ter certeza de como as diferenças físicas eram percebidas na Antiguidade e essas teorias são apenas especulativas.

Na Idade do Ferro, suicidas não tinha lugar em cemitérios de igrejas (Imagem: TeleMakro Fotografie/Shutterstock)

Homem de Tollund

Talvez o rosto mais bem preservado de todo o mundo antigo seja o do Homem de Tollund, um corpo do pântano encontrado na Dinamarca em maio de 1950. Atualmente, ele repousa em posição fetal no Museu Silkeborg.

Como ocorre com muitos desses corpos, os ácidos do pântano transformaram a cor de sua pele em tom preto-azulado. Seus pelos e cabelos ficaram com cor laranja brilhante, embora ele esteja usando chapéu de pele de carneiro que cubra a maior parte.

Todas as linhas finas e quase todos os poros da pele são visíveis. Suas pálpebras enrugadas estão fechadas, dando a ilusão de sono pacífico.

“Você consegue realmente conhecer essa pessoa”, afirmou Ole Nielsen. “O rosto é a parte do corpo que detém a maior expressão do corpo humano. É realmente fascinante conhecer um homem da Idade do Ferro, com mais de dois mil anos de idade, que parece poder despertar a qualquer momento.”

Além do seu chapéu de pele de carneiro, o Homem de Tollund foi enterrado vestindo apenas um cinto de tecido na cintura e uma corda em volta do pescoço.

“Se ele estivesse vestido com alguma roupa de lã, ela teria sido preservada, sem dúvida”, segundo Nielsen. Os ácidos do pântano preservam colágeno e queratina, que estão presentes em materiais como a lã. “Seus cabelos ainda estão ali, suas unhas estão ali.” Também não há marcas de roupas na superfície da pele do Homem de Tollund.

“Examinamos seu corpo com muito cuidado, usando microscópios. Ainda existem muitas folhas de musgo que podem ser observadas no corpo, mas nada que indique que houvesse alguma outra coisa sobre ele. Por isso, provavelmente ele foi morto como nós o vemos. É realmente muito inusitado vê-lo nu com um chapéu”, explicou Nielsen.

No seu conjunto, as condições do homem de Tollund indicam ritual da morte. “Para o sacrifício, ele foi barbeado e colocado no pântano com a corda do enforcamento”, destacou Nielsen.

Ele acredita que deixar a corda com o corpo seja simbólico, já que até um objeto simples como uma corda tinha valor e podia ser usado novamente.

“Ela provavelmente foi deixada como um sinal”, afirmou Nielsen. “Sua função era ser colocado no pântano porque tinha aquele propósito. Se ele foi voluntário ou escolhido ao acaso, nós não sabemos. Mas ele não parece tão insatisfeito.”

Na Antiguidade, as pessoas viviam por seu deus (Imagem: LilKar/Shutterstock)

Agradar aos deuses

A ideia de seguir voluntariamente para uma morte tão tenebrosa é difícil de entender para uma mente do século XXI, mas pode não ter sido tão bizarra para as pessoas que viviam na Idade do Ferro.

“Precisamos pensar em um mundo em que os deuses estão em toda parte. Tudo o que você fizer é associado aos deuses”, afirmou Aldhouse-Green.

Por isso, manter os deuses felizes pode ser questão de vida e morte não só para os indivíduos, mas para comunidades inteiras.

“Se você aborrecesse os deuses, eles dariam uma colheita fraca, uma praga, as safras seriam perdidas e assim por diante. E você precisava ter os deuses do seu lado”, explicou Aldhouse-Green.

Melanie Giles concorda. “Você está lidando com entidades que influenciam sua vida, deuses ou espíritos, existe algo sobrenatural ali e se pode ter acesso pelo pântano”, afirmou ela.

Giles acrescenta que pode ter havido um elemento circular para a oferenda de pessoas aos deuses pelo pântano. “Como as pessoas tiravam muito dos pântanos, elas parecem ter sido compelidas a devolver alguma coisa.” Às vezes, eram caldeirões, às vezes havia oferendas de alimentos, como manteiga do pântano.

“Se você ofertar uma pessoa, uma vida – talvez fosse o melhor tipo de oferenda que você poderia fazer”, explicou Giles.

Embora existam evidências de que o Homem de Lindow, o Homem de Tollund, o Homem de Grauballe e outros fossem sacrifícios humanos, Giles ressalta que não devemos considerar que todos os corpos dos pântanos fossem oferendas.

No caso de alguns corpos, como o da Mulher de Lindow, simplesmente não temos informações suficientes para formar um quadro convincente de como foi sua morte.

“Existem alguns corpos que não exibem sinais de violência e essas pessoas podem ter simplesmente afundado”, ressaltou ela. “São locais perigosos. As pessoas morrem no pântano – elas morrem de exposição, morrem tentando cruzar o pântano, perdem seus calçados ou calculam mal onde estão andando. Algumas delas podem ter sido mortes acidentais.”

Outros, segundo ela, podem ter sido simples assassinatos. Talvez o pântano deserto às vezes fosse apenas um local conveniente para atos abomináveis.

E pode também ter havido vítimas de suicídio entre os mortos, talvez colocados ali em época em que essas mortes eram tratadas com medo e não com empatia.

“Os pântanos podem ter sido considerados o local certo para colocar um corpo perigoso – alguém que morreu misteriosamente ou de forma não natural”, afirmou Giles.

“Parte disso tinha a ver com as declarações da igreja, de que não queria essas pessoas em seus cemitérios. E parte disso porque o pântano é um local poderoso, além da visão humana, onde os mortos podem ser guardados”, concluiu.

Via BBC Future

Imagem destacada: Maksim Safaniuk/Shutterstock

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