Um total de 65 mortos, muitos feridos e desabrigados, além de uma imensa destruição ambiental e material provocada pelo maior acumulado de chuva que se tem notícia na história do país. Esse é o cenário da tragédia que se abateu na última semana sobre o litoral norte de São Paulo, em especial, o município de São Sebastião.

Estragos em São Sebastião após fortes chuvas
Fortes tempestades em São Sebastião (SP) registram maior acumulado de chuva que se tem notícia na história do país. Imagem: Divulgação/Prefeitura de São Sebastião

Como se sabe, infelizmente, esse não foi o primeiro registro de tempestades avassaladoras nos últimos tempos no Brasil.

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Vimos quadros semelhantes em fevereiro do ano passado, em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, e no sul da Bahia, dois meses antes, quando um ciclone extratropical provocou chuvas tão intensas que diversas cidades entraram em estado de emergência e calamidade. O estado de Minas Gerais também foi assolado por enchentes provocadas por fortes temporais entre o fim de 2021 e o início de 2022. 

Por que essas tragédias acontecem?

São diversos agentes que influenciam essas situações. Primeiro que essa chuva toda caiu sobre a Serra do Mar, uma região geologicamente instável e sujeita naturalmente aos deslizamentos de encostas e os decorrentes fluxos de detritos que atingem a planície litorânea e as praias.

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A Serra do Mar foi formada por uma movimentação tectônica que ocorreu dezenas de quilômetros a leste da sua posição atual. Em milhões de anos, as escarpas recuaram em direção ao planalto por meio de sucessivos escorregamentos. No entanto, só houve registros de desastres nos últimos 80 a 90 anos, quando a ocupação urbana avançou na base e nos declives da serra. 

Deslizamento de terra causado por fortes chuvas na praia de Boiçucanga, cidade de São Sebastião, SP, no Carnaval de 2023. Imagem: Nelson Antoine – Shutterstock

Particularmente, nos últimos 40 anos, a ocupação urbana avançou muito no litoral norte de São Paulo, e esse avanço se deu da forma mais agressiva possível. 

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De acordo com o engenheiro civil Celso Santos Carvalho, mestre e doutor em engenharia pela escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e membro da coordenação nacional da rede BrCidades, as dezenas de praias existentes entre os centros urbanos de Bertioga e São Sebastião eram, até 1980, ocupadas por pequenas vilas caiçaras, que se mantinham prudentemente afastadas da base da serra.

“Com a construção da BR 101 entre Bertioga e São Sebastião, as comunidades caiçaras foram violentamente expulsas, e as praias foram ocupadas por loteamentos fechados (figura urbanística ilegal na época) voltados para a implantação de casas de veraneio para população de altíssima renda”, explica Carvalho em um artigo publicado no site Outras Palavras. “A população pobre, sejam os antigos caiçaras, sejam os que vieram trabalhar nas construções, teve que ocupar o pé da serra, região que é formada geologicamente pela deposição de solo e rocha dos escorregamentos das encostas. Área, portanto, suscetível de ser atingida pelos escorregamentos”. 

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Celso Santos Carvalho, mestre e doutor em engenharia pela escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e membro da coordenação nacional da rede BrCidades. Imagem: USP

Segundo Carvalho, cabe observar que os institutos de meteorologia previram, com pelo menos três dias de antecedência, que chuvas extremamente intensas atingiriam o litoral norte de São Paulo durante o fim de semana. 

Na quinta-feira (16), o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), avisou as prefeituras e a Defesa Civil estadual que as chuvas seriam excepcionais. 

Na manhã seguinte, com a proximidade do evento, a previsão pôde ser aprimorada: a chuva mais forte ocorreria na madrugada de sábado e se concentraria entre Bertioga e São Sebastião. 

Ocorre que, no entanto, milhares de turistas desceram para as praias para aproveitar o Carnaval. Só em São Sebastião, município com menos de 100 mil habitantes, havia quase 500 mil pessoas no sábado (18). 

“A Defesa Civil do Estado de São Paulo nada fez para impedir ou ao menos desincentivar isso. As prefeituras nada fizeram”, afirma o engenheiro. “As rádios, televisões e internet não desaconselharam o deslocamento dessa enorme população em direção ao ponto onde ocorreria o dilúvio. Na verdade, o alerta foi dado, mas ninguém ligou. Ninguém percebeu a gravidade. E, principalmente, ninguém sabia o que fazer a partir do alerta”.

No sábado a noite, a chuva desabou na região. E as ocupações populares no pé da encosta, como a Vila Sahy, foram fortemente atingidas por deslizamentos, blocos de rocha e avalanches de detritos, com destruição generalizada de moradias e mortes. 

Carvalho ressalta que há anos esses locais já tinham sido mapeados como áreas de risco e, no entanto, nenhuma obra de prevenção, como muros de proteção dos canais naturais por onde fluem as avalanches, foi construída.

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Dessa forma, temos a seguinte equação: geologia local instável + chuvas intensas cada vez mais frequentes + alertas dos serviços de previsão de tempo e Defesa Civil ignorados + falta de planejamento urbano e incapacidade de prover segurança para as comunidades historicamente deslocadas para áreas de risco = tragédia.

E por que as chuvas estão cada vez mais intensas?

Sim, as mudanças climáticas têm seu papel

De acordo com o pesquisador do Cemaden, Giovanni Dolif Neto, doutor em Meteorologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o problema pode ser dividido em duas questões. Uma natural, parte do ciclo da natureza, e outra, humana.

“Na componente natural, o clima do nosso planeta, ao longo da história, evoluiu, mudou muitas vezes. Já foi muito mais quente do que é hoje e já foi muito mais frio. Já tiveram vários ciclos de glaciações, quando boa parte da água ficou congelada e depois voltou a derreter. E esses diferentes momentos do clima do planeta também proporcionam uma distribuição das chuvas de uma forma diferente”, declarou Dolif em entrevista ao Olhar Digital.

Segundo Dolif, como as cidades foram se estabelecendo com uma densidade demográfica muito grande, “a necessidade de água foi aumentando nessas regiões”. Com o estilo de vida que o homem assumiu nesses últimos mais de cem anos desde a industrialização, especialmente nas últimas décadas, ele agiu ativamente sobre a natureza. “Passou a emitir muitos gases de efeito estufa, modificou o ambiente, desmatou, tirou muita vegetação de áreas onde ela era importante, especialmente em mananciais, na margem de rios. E, com isso, o ciclo da água foi perturbado. E, assim, também, a distribuição das chuvas”, explica o pesquisador.

O somatório do ciclo natural do clima com as ações humanas consequentes da urbanização teve resultados inevitáveis sobre o meio ambiente: mudanças climáticas, esgotamento da camada de ozônio, acidificação dos oceanos e disponibilidade decrescente de água potável são algumas dessas consequências.

“Na região sudeste, por exemplo, a gente desmatou quase toda a Mata Atlântica. Bem mais de 90% foi desmatado. Isso tem uma influência na quantidade de vapor que vai para a atmosfera”, explica Dolif. “Cada vez que vem uma frente fria ou que dá uma chuva de verão, você tem menos vapor na atmosfera. São efeitos que são gradativos – a atmosfera não responde de uma forma linear. Ela vai se modificando até que a gente chega num ponto de não retorno”, alerta.

Segundo o especialista, com as mudanças climáticas, o planeta fica mais compatível com uma maior frequência e intensidade de extremos do clima: tanto no excesso como na escassez de chuva.

Em uma reportagem especial do Olhar Digital sobre a crise hídrica que vem assolando o nosso planeta, publicada em julho de 2021, você tem uma explicação detalhada sobre a alteração dos ciclos das chuvas – além de outras questões relacionadas às mudanças climáticas.

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