Arqueólogos descobriram recentemente um conjunto raro de ferramentas médicas em uma necrópole perto de Jászberény, a cerca de 35 quilômetros de Budapeste, na Hungria. 

Guardados em dois baús de madeira, os instrumentos incluíam uma pinça (usada para extrair dentes), uma cureta (para mistura, medição e aplicação de medicamentos) e três bisturis de liga de cobre equipados com lâminas de aço destacáveis e incrustados com prata em estilo romano. 

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Ao lado dos baús, estavam o crânio e alguns ossos das pernas de um homem que se presume ter sido um cidadão romano que morreu quando tinha entre 50 e 60 anos.

No local, aparentemente intacto por cerca de 2.000 anos, também havia um pilão que, a julgar pelas marcas de raspagem e resíduos de drogas, provavelmente seria usado para moer ervas medicinais. 

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Perfuração de crânio estava entre as práticas médicas do Império Romano

Entre os itens mais incomuns estavam uma alavanca óssea, equipamento usado para colocar ossos fraturados de volta no lugar, e a alça do que parece ter sido uma broca para perfurar o crânio.

De acordo com o jornal The New York Times, o instrumentário, adequado para realizar operações complexas, fornece um vislumbre das práticas médicas avançadas dos romanos do primeiro século e até onde os médicos podem ter viajado para atendimento. “Nos tempos antigos, eram ferramentas comparativamente sofisticadas feitas dos melhores materiais”, disse Tivadar Vida, diretor do Instituto de Arqueologia da Universidade Eötvös Loránd (ELTE), em Budapeste, líder da escavação.

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Entre os instrumentos escavados estavam uma pinça, uma cureta e três bisturis de liga de cobre equipados com lâminas de aço destacáveis e incrustados em prata. Crédito: Rusznák Gábor/ELTE

Há dois milênios, Jászberény fazia parte do Barbaricum, uma ampla região que ficava além das fronteiras do Império e servia de escudo contra possíveis ameaças externas. “Como poderia um indivíduo tão bem equipado morrer tão longe de Roma, no meio do Barbaricum?”, indaga Leventu Samu, pesquisador do ELTE e membro da equipe da escavação, a respeito do homem encontrado junto das ferramentas. “Ele estava lá para curar uma figura local de prestígio ou talvez estivesse acompanhando um movimento militar das legiões romanas”, propõe.

Para Colin Webster, professor de clássicos da Universidade da Califórnia em Davis e presidente da Sociedade de Medicina Antiga e Farmacologia dos EUA, a descoberta ilustra a permeabilidade das fronteiras culturais no mundo antigo. “A medicina tem sido um dos vetores mais ativos para o intercâmbio intercultural, e essa descoberta certamente ajuda a mostrar as evidências físicas dessas dinâmicas”.

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A maioria dos médicos do Império Romano era de origem grega, ou pelo menos falante da língua. Muitos eram libertos ou mesmo escravos, o que pode explicar sua a baixa posição social que ocupavam.

Se o indivíduo encontrado na necrópole húngara era mesmo um médico não está claro, segundo os pesquisadores, mas provavelmente não era um cidadão local. 

“Estudar medicina só era possível, na época, em um grande centro urbano do império”, disse Samu. Os médicos eram itinerantes, e os tratamentos variavam de acordo com o território. “Escritores médicos antigos, como Galeno, aconselhavam que os médicos viajassem para aprender sobre doenças que eram comuns a certas áreas”, disse Patty Baker, ex-chefe de arqueologia e clássicos da Universidade de Kent, na Inglaterra.

Os aspirantes a cirurgiões eram incentivados a aprender com médicos reconhecidos, estudar em grandes bibliotecas e ouvir palestras em lugares como Atenas e Alexandria, um centro de aprendizado anatômico. Para adquirir experiência no tratamento de feridas de combate, os médicos frequentemente se internavam no exército e em escolas de gladiadores, o que poderia explicar a presença de ferramentas médicas no Barbaricum.

Em pe, de bermuda caqui e camisa branca, Tivadar Vida, diretor do Instituto de Arqueologia da Universidade Eötvös Loránd, em Budapeste, fotografando o local da escavação, que fica a cerca de 35 quilômetros de Budapeste. Crédito: Leventu Samu/ELTE

Mastectomia e amputação de fetos com faca

“Não havia conselhos de licenciamento nem requisitos formais para o ingresso na profissão”, disse Lawrence Bliquez, arqueólogo emérito da Universidade de Washington. “Qualquer um poderia se dizer médico”. Se seus métodos fossem bem-sucedidos, ele atraía mais pacientes; se não, buscava outra carreira.

Costumavam-se realizar cirurgias nos orifícios do corpo para tratar pólipos, amígdalas inflamadas, hemorroidas e fístulas. Além da trepanação (perfuração do crânio), as operações mais radicais incluíram mastectomia, amputação, redução de hérnia e catarata. “A cirurgia era um domínio masculino”, disse Bliquez. “Mas, certamente, havia muitas parteiras, que também entendiam de cirurgia, especialmente no que diz respeito à ginecologia”.

Embora as cesarianas só tenham surgido muitos anos depois, por volta de 1500, os romanos praticavam a embriotomia: uma cirurgia por meio da qual uma faca era usada para cortar os membros de um bebê quando ele estava preso no canal de parto. “Um gancho era usado para retirar os membros, tronco e cabeça do canal de parto depois de cortados”, disse Baker. “Era um procedimento horrível usado para salvar a vida de uma mãe”.

Muitas vezes, as cirurgias eram o último recurso de todos os tratamentos médicos. “Qualquer uma das ferramentas encontradas na sepultura de Barbaricum poderia ter causado mortes”, disse Baker. “Não havia conhecimento de esterilização ou teoria de germes. Os pacientes provavelmente morreriam de sepse e choque”.

“O fato de o falecido ter sido enterrado com seus equipamentos talvez seja um sinal de respeito”, disse Samu, considerando a hipótese de os restos mortais realmente pertencerem a um médico.

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