A ONG AstroAccess vem promovendo um programa para que voos em simulação de “gravidade zero” também contemplem deficientes físicos – os chamados “portadores de necessidades especiais” ou “PNEs”. A entidade recentemente inaugurou o projeto ao levar 12 cadeirantes para um voo do tipo no último domingo (24).

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A ideia vem para rebater os parâmetros proibitivos da Nasa e de outras agências espaciais para selecionar astronautas: tradicionalmente, as exigências incluem pessoas com vigor físico elevado (e, antigamente, apenas brancos e homens). Independente da validade dessa ordem, o fato é que PNEs acabam excluídos de qualquer seleção do tipo, alienados por condições físicas que, na maioria dos casos, fogem aos seus controles.

O voo em gravidade zero teve como objetivo testar a reação dos deficientes a esse tipo de ambiente. A sensação generalizada foi libertadora, segundo relatos dos participantes ao New York Times: “foi legitimamente esquisito. O simples fato de ficar em pé, para mim, foi quase tão alienígena quanto flutuar por aí em gravidade zero”, disse Eric Ingram.

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Imagem mostra Eric Ingram, que participou de voo em gravidade zero para deficientes feito por ONG
Eric Ingram, cadeirante que participou de voo em gravidade zero destinado a deficientes, descreveu a sensação de liberdade de membros paralisados com boa receptividade, porém admitiu estranheza (Imagem: AstroAccess/Divulgação)

Ingram sofre de uma rara condição chamada Síndrome de Freeman-Sheldon, uma doença congênita onde as fibras musculares não se formam adequadamente e o desenvolvimento é interrompido, confinando o paciente à cadeira de rodas.

O voo em gravidade zero proporcionado aos 12 deficientes pela AstroAccess não é exatamente a mesma coisa que uma viagem espacial: a decolagem de um foguete teria um impacto muitas e muitas vezes maior que a aceleração normal da gravidade no corpo dos passageiros. Em vez disso, um avião especialmente adaptado faz um voo em um percurso que forma um amplo arco (ou parábola), subindo a grandes alturas e mergulhando rapidamente, negando temporariamente os efeitos de gravidade.

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Muito dos impedimentos de participação de PNEs em voos espaciais reais se dão pela ausência de regras voltadas a esse público: segundo o New York Times, por lei, a Administração de Aviação Civil (FAA, na sigla em inglês) dos EUA é proibida de criar regulamentações voltadas especificamente a essa demografia até 2023. Entretanto, não há, nessas normas, nenhuma menção direta à capacidade física das pessoas, o que em tese permite que adaptações sejam feitas para acomodar quem não tem a mesma capacidade de locomoção de corpos nascidos sem dificuldades motoras.

É nisso que a AstroAccess quer apostar: com o crescimento de voos comerciais privados para a órbita da Terra, a tendência é a de que ofertas do tipo cresçam e se popularizem. Empresas como Blue Origin e SpaceX encabeçam essa ideia (cada uma com missões bem-sucedidas no ramo). Nisso, a AstroAccess quer ser o ponto de ignição para que as próximas discussões sobre o assunto também contemplem voos em gravidade zero e ofertas similares para deficientes físicos.

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“É crucial que nós tenhamos algum benefício dentro do processo regulatório e possamos prevenir que a desinformação – ou a falta de informação – acabe se traduzindo em normas ruins ou que a falta de dados impeça alguém com necessidades especiais de voar nessas viagens”, disse Ingram, que é co-fundador e CEO da SCOUT, uma empresa que cria componentes inteligentes para satélites.

Imagem mostra Centra Mazyck, que participou de voo em gravidade zero para deficientes feito por ONG
A ex-soldado Centra Mazyck, paralisada após lesão sofrida em seu tempo no Exército dos EUA, disse que há certa dificuldade em movimentos em gravidade zero por você não ter muita noção de sua própria força (Imagem: AstroAccess/Divulgação)

O interessante é que as pessoas selecionadas pela AstroAccess são, apesar de suas dificuldades, entusiastas da exploração espacial. Além de Ingram, outro passageiro da ONG – Sawyer Rosenstein – é jornalista especializado em astronomia e participante frequente do podcast Talking Space, um dos mais conhecidos do setor.

Rosenstein, que sofreu uma lesão séria no Ensino Fundamental que o paralisou da cintura para baixo, comentou sobre a sua cadeira de rodas, que usa uma liga metálica especial, desenvolvida pela própria Nasa. Segundo o seu relato, o voo parabólico permitiu que ele agarrasse os próprios joelhos e manobrasse as próprias pernas – algo que ele não fazia desde criança:

“Eu estava no controle de mim mesmo e de todo o meu corpo”, disse Rosenstein. “É quase indescritível a sensação de ter toda essa liberdade depois de ela ter sido tirada de você há tanto tempo”, ele adicionou, dizendo que o voo também lhe deu uma flexibilidade maior, permitindo movimentos de amplitude completa, sem a dor crônica que ele normalmente sente quando se move na cadeira de rodas.

Imagem mostra Mona Minkara, que participou de voo em gravidade zero para deficientes feito por ONG
A bioengenheira Mona Minkara, que nasceu sem a visão, conseguiu participar de forma plena do voo em gravidade zero, inclusive afirmando ter total ciência de sua posição e orientação sem dificuldades (Imagem: AstroAccess/Divulgação)

Se mover dentro dessas condições, entretanto, não foi algo muito simples, de acordo com Centra Mazyck, que ficou parcialmente paralisada após se ferir quando servia à 82ª Divisão Aérea do Exército dos Estados Unidos (os soldados paraquedistas, ou “paratroopers” – não confundir com a Força Aérea, que é outra área): “É bem difícil porque é como se você estivesse flutuando, você é leve feito uma pluma. Você não tem muita noção das suas forças e fraquezas”, ela comentou.

A AstroAccess não limitou-se apenas em pessoas com dificuldades motoras, convidando também a bioengenheira Mona Minkara, que nasceu cega. No caso dela, a ONG forneceu dois dispositivos – um ultrasônico e um de retorno háptico – que sinalizavam quando ela se aproximava de paredes e outras superfícies. Além disso, ela também usou um artifício simples e, ao menos para ela, bastante comum: uma bengala retrátil.

“O que me surpreendeu foi que, em alguns momentos, eu sabia exatamente não só onde eu estava, mas também para qual direção eu estava virada”, ela disse, antes de comentar que a inclusão e o treinamento de cegos em voos espaciais pode ser útil para o caso de falhas de energia que venham a deixar na escuridão astronautas sem deficiências.

Os vôos parabólicos são uma parte essencial do treinamento de novos astronautas para qualquer agência espacial. A AstroAccess conduziu esses vôos de forma curta – diversas sessões de 20 a 30 segundos cada, a fim de provar que PNEs também podem suportar lançamentos suborbitais como o que levou Jeff Bezos, fundador da Blue Origin, em julho deste ano.

Felizmente, o setor parece estar se tornando mais receptivo à ideia de voos em gravidade zero – suborbitais ou não – para deficientes: desde fevereiro deste ano, a agência espacial europeia (ESA) vem procurando o que chamou de “o primeiro parastronauta”, aceitando inscrições de pessoas com amputações ou com altura especialmente reduzida, como portadores de nanismo.

Paralelo a isso, a missão Inspiration4, da SpaceX, levou a primeira portadora de prótese ao espaço: Hayley Arceneaux, enfermeira e ex-paciente de câncer ósseo, tem uma prótese de titânio no fêmur esquerdo.

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