O que é mais romântico do que um passeio nas gôndolas que cruzam os canais de Veneza? Considerada uma das mais bonitas da Itália, a “cidade flutuante” recebe milhões de turistas anualmente, mas seu início não foi tão glamoroso assim: Veneza nasceu de uma situação inóspita, sobre lama e muitos troncos de árvores.

Esta é a décima primeira reportagem de uma série sobre megaprojetos ao redor do mundo, publicada todas às terças e quintas-feiras. O Olhar Digital já abordou o maior prédio do mundo, a arena iluminada de Las Vegas e o canal que uniu dois oceanos.

publicidade

Leia mais:

Origem de Veneza

Localizada no norte da Itália, Veneza é um conjunto de 117 ilhas um pouco acima do nível do mar, ligadas entre si por canais e pontes. Um marco de engenharia e arquitetura no presente, a cidade nasceu da necessidade dos povos locais de se proteger dos invasores.

publicidade

Conheça a história:

  • Tudo começou no século V, quando o último líder do Império Romano do Ocidente, Rômulo Augusto, foi deposto por povos germânicos
  • O que se seguiu na Europa foi um período conhecido como “invasões bárbaras”, fragmentando o que um dia já fora um grande território unificado;
  • Os moradores do que posteriormente viria ser a Itália precisavam de um local estratégico para se proteger das invasões. O lugar escolhido foi uma laguna situada entre o continente e o Mar Adriático;
  • No entanto, a região era pantanosa, com poucas áreas secas e quase impossível de se instalar. Quase: com esforços de engenharia e arquitetura, a cidade flutuante domou as águas do Adriático a seu favor.

Como já dizia o pensador russo Aleksandr Herzen, no século XIX:

publicidade

Construir uma cidade onde em tese seria impossível fazê-lo já seria uma loucura; mas construir uma das cidades mais elegantes do mundo em um lugar como esse é uma loucura colossalmente genial.

Veneza vista de cima (Imagem: Aerial-motion/Shutterstock)

Construção

A construção, obviamente, não foi nada simples. Domar as águas não era o único desafio dos venezianos: eles também tiveram que enfrentar a lama do local.

De acordo com o site ArchDaily, os construtores tiveram que recorrer a uma técnica usada por antigos produtores de sal. O primeiro passo foi selecionar áreas em que a terra era mais seca e firme, e usar estacas de madeiras para delimitar quadrantes no solo. Isso permitia secar essas áreas através da escavação de canais para escoamento, criando as condições mínimas para o início das obras.

publicidade

Isso não resolvia todo o problema. Segundo Fábio Nienov, arquiteto, urbanista e doutorando em Planejamento Urbano e Regional na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), outro desafio era criar a fundação das construções em um local tão pantanoso e barrento como era Veneza na época. Em contato com o Olhar Digital, ele comparou a cidade italiana com Amsterdã, que igualmente sofreu com um terreno lodoso e teve de aprender a conviver com a água.

No caso de Veneza, a solução foi enterrar um bosque inteiro nessas áreas cheias de água, que permitiram dar a sustentação para os edifícios que viriam depois. Mas onde achar esses materiais em abundância?

O professor Pedro Henrique Cerento de Lyra, coordenador do curso de Engenharia Civil do Instituto Mauá de Tecnologia, explicou à nossa reportagem que a escassez foi mais um problema enfrentado pelos venezianos. A solução foi complexa:

Os engenheiros trouxeram grandes troncos de árvores de áreas distantes, como Eslovênia, Montenegro e Croácia, e os afiaram em um dos extremos, parecendo lápis gigantes. Com esses troncos, eles perfuraram a lama e o barro que cobriam a cidade na época, dando a segurança necessária para a edificação. Posteriormente, os engenheiros começaram a usar não apenas madeira, mas também pedra para reforçar as fundações dos edifícios.

Pedro Henrique Cerento de Lyra, ao Olhar Digital
(Imagem: Pani Garmyder/Shutterstock)

E a madeira?

A solução inovadora dos construtores venezianos impediu, inclusive, que a madeira apodrecesse. Uma reportagem da BBC explicou: os pilares foram completamente submersos e não tiveram acesso ao ar. Consequentemente, eles não tiveram acesso ao oxigênio, bactérias, fungos e outros organismos responsáveis pela putrefação.

Ainda, o lodo da cidade tinha uma grande quantidade de minerais, que foram absorvidos pela madeira com o tempo e fez com que ela petrificasse.

(Imagem: Cristi Croitoru/Shutterstock)

Finalização do projeto

Depois da fundação estar firme no solo, camadas de madeira eram usadas para nivelar o chão e distribuir o peso do edifício que viria ali, seguida de mais pedras como forma de impermeabilização.

A partir daí, os construtores ficavam livres para começar a construir. O principal material usado era o tijolo, que predomina na paisagem veneziana até hoje.

Infraestrutura urbana

  • Na parte de infraestrutura urbana, as ruas eram cobertas por uma pedra chamada trachite. Embaixo dela, vem o sistema elétrico e hidráulico da cidade;
  • Por sua construção desafiadora e pela divisão do território em ilhotas, um dos principais (e mais famosos) transportes de Veneza são as gôndolas, embarcações projetadas para remar de forma rápida e fácil nos canais da cidade;
  • O principal canal da região é o Canal Grande, com cerca de 4,2 km e de 3 a 5 metros de profundidade;
  • A ponte principal, que liga a ilha até a cidade de Mestre (“Veneza nova” ou “Veneza continente”, como alguns chamam), é a única que permite tráfego de carros, ônibus e trem. Já na parte das ilhotas, o único local onde automóveis circulam é o Piazzale Roma.
  • O restante das ilhas são conectadas por pontes menores, que marcam a paisagem da capital flutuante e fazem a alegria dos turistas.
(imagem: Oleg Senkov/Shutterstock)

Turismo em Veneza

Não à toa, Veneza virou um ponto turístico badalado.

O crescimento da cidade para se tornar o que é hoje começou pela sua posição marítima estratégica, um ponto crucial na Rota da Seda. Nienov lembra que isso permitiu à cidade se tornar um importante centro comercial e militar, promovendo o enriquecimento para os povos locais.

O arquiteto Fábio Nienov correlaciona esse enriquecimento à criação de novos estilos arquitetônicos, inclusive durante o Renascimento, que só agregaram para tornar Veneza ainda mais rica histórica e culturalmente.

A Itália era o centro financeiro da Europa, tinha muito dinheiro e, óbvio, construía muito. Veneza tem características arquitetônicas únicas por ser uma porta entre o Ocidente e o Oriente. Os prédios têm misturas de estilos… não são 100% italianos ou renascentistas. Principalmente na Basílica de São Marcos, você vê que o frontão tem elementos islâmicos. […] As pessoas ali estavam a par do que acontecia no Oriente próximo.

Fábio Nienov, ao Olhar Digital

Consolidando a importância da história da cidade, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) determinou que Veneza fosse listada como Patrimônio Mundial da Humanidade em 1987. A Unesco destaca, além das lagoas e construções, a importância arquitetônica da região, com peças de autoria de pintores como Giorgio da Castelfranco, Ticiano, Paolo Veronese e Tintoretto.

(Imagem: Yasonya/Shutterstock)

Veneza é patrimônio da humanidade – mas corre riscos

O turismo não vem de graça e Veneza corre risco de preservação.

Em agosto de 2023, a própria Unesco recomendou a adição da cidade à lista de Patrimônios Mundial em Perigo. Como reportou a CNN, o órgão definiu que não houve um “nível significativo de progresso na abordagem das questões persistentes e complexas relacionadas, em particular, ao turismo de massa, projetos de desenvolvimento e mudança climática”.

Isso estaria causando “deterioração e danos a estruturas edificadas e áreas urbanas, degradando a identidade cultural e social do bem e ameaçando a integridade de seus atributos e valores culturais, ambientais e paisagísticos”.

Entenda alguns dos problemas de Veneza:

  • Os principais desafios enfrentados pela capital flutuante são relacionados ao turismo em massa e às mudanças climáticas;
  • A cidade sempre esteve sujeita a inundações — afinal, convive com a água —, mas a situação vem piorando com o aumento do nível do mar, fruto das mudanças climáticas. Em novembro de 2019, por exemplo, os episódios foram tão fortes que ameaçaram edifícios históricos das ilhas;
  • Outro caso foi em fevereiro do ano passado. As temperaturas baixas e falta de chuvas provocaram secas nos canais de Veneza, o que impediu a passagem de gôndolas e outros tipos de embarcação, travando o comércio, o turismo e a vida na cidade;
  • Segundo Lyra, outro problema das inundações frequentes e do turismo em massa é a erosão da região. Isso porque o aumento no tráfego de barcos desgasta os solos onde as fundações antigas estão estabeleciam, e as inundações coloca a integridade do patrimônio arquitetônico e cultural em risco.
(Imagem: Catarina Belova/Shutterstock)

Soluções

Em setembro do ano passado, pouco tempo depois de a Unesco ter recomendado a adição de Veneza na lista de patrimônios em risco, a agência anunciou que não seguiria em frente com a decisão.

Um diplomata revelou à AFP que o órgão voltou atrás depois da implantação de um sistema de gestão de fluxo de visitantes a partir de 2024, considerado um avanço para frear o turismo em massa.

No início deste ano, Veneza colocou em vigor a cobrança de uma taxa de 5 euros (cerca de R$ 27) para turistas que ficarem apenas um dia na cidade. A tarifa será cobrada em períodos de turismo intenso, com calendário pré-definido, e pode ser paga pela internet.