De acordo com o site Phys, nos últimos 50 anos morreram cerca 5 mil peixes-boi nos EUA. Mas em toda essa extensão de mortalidade, nunca houve uma taxa tão elevada como a registrada entre dezembro de 2020 e maio deste ano, quando 677 carcaças foram contadas na Flórida

Metade desses corpos estava na porção do rio Indian, no condado de Brevard, uma lagoa costeira em colapso biológico devido à poluição causada pela interferência humana.

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Peixes-boi estão entre os animais mais resistentes, capazes de se curar até de feridas provocadas por hélices de embarcações. Mas, estão morrendo de fome na Flórida. Imagem: Agência AFP

Em razão da pandemia, não foram feitas necropsias em dois terços dos mortos em Brevard. No entanto, em fevereiro, as autoridades descobriram que o frio do inverno não era o culpado. Eles sabiam, pelos corpos contorcidos dos peixes-boi e por não encontrarem quase nenhuma erva marinha na lagoa, que os animais estavam morrendo de inanição.

Peixes-boi morreram de fome na Flórida

Muito amados e irresistivelmente fofinhos, os peixes-boi estão entre as criaturas mais fortes e resistentes da Flórida, capazes de se curar até de feridas provocadas por hélices de embarcações.

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Segundo informações, o sofrimento durou meses. Muitos perderam quase metade do peso. Enquanto ainda vivos, os ossos perfuraram a pele e, o que é notável para os veterinários, o coração, o fígado e outros órgãos foram se liquefazendo.

Para tentar sobreviver, os animais consumiram sua gordura e músculos. Eles perderam a flutuabilidade e, ficando exaustos demais para nadar, não conseguiam mais erguer a cabeça para respirar.

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Alguns sobreviveram, mas totalmente debilitados. Especialistas temem que seu estado de saúde retarde a reprodução da espécie por anos.

Alguns deles morreram durante as tentativas de resgate

Durante os esforços de resgate de 80 peixes-boi, uma tarefa que exige 10 pessoas para cada animal, muitos não resistiram: sete morreram durante o resgate e oito morreram na terapia intensiva. Até agora, 37 foram salvos e colocados de volta na natureza.

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Martine de Wit, veterinária da Comissão de Conservação de Peixes e Vida Selvagem da Flórida, enumerou muitas causas específicas de mortes de peixes-boi, muitas vezes com um exame cuidadoso. A causa raiz por trás das centenas deles que morreram de fome, segundo ela, é claramente “um ecossistema em apuros”.

Dezenove peixes-boi órfãos foram levados aos centros de resgate no período crítico

Jon Peterson, que supervisiona a vida selvagem resgatada no SeaWorld Orlando, disse que um bebê peixe-boi órfão, ou recém-nascido, criado em cativeiro precisa de três anos até que possa ser solto de volta à vida selvagem.

De dezembro a maio, 19 órfãos foram levados para os centros de assistência, sendo 13 — ou quase três vezes o número médio — da costa leste do estado.

“Vamos dar mamadeira a cada três horas durante o primeiro ano”, disse Peterson. “Vamos começar a dar a eles um pouco de alface por volta do terceiro mês. Por volta de um ano, começamos a transição, vamos colocá-los em nossa exposição”.

Bebês peixes-boi órfãos são alimentados por mamadeira e tratados para serem reconduzidos à vida selvagem. Imagem: Agência AFP

Existem 18 organizações públicas e privadas que compartilham os custos e esforços de resgate e cuidado dos peixes-boi. Dessa parceria, quatro fornecem cuidados intensivos: Jacksonville Zoo, Miami Seaquarium, SeaWorld e ZooTampa. Eles estão na capacidade máxima.

Um peixe-boi atingido pela maré vermelha ou atropelado por um barco pode levar vários meses para se recuperar.

“Você sabe quanto tempo levamos para reabilitar um animal faminto?” Peterson disse. “Digo que de seis a sete meses de trabalho para recuperá-los, talvez um ano”.

Alguns chegaram a pesar 360 kg, quando seu peso normal é de 635 kg a 725 kg. Segundo Peterson, leva semanas para estabilizá-los, usando habilidades médicas de alto nível. “Se tudo correr bem, eles começarão a ganhar cerca de quatro a nove quilogramas por semana”.

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Recuperação das ervas marinhas no rio Indian

Lauren Hall é uma das principais pesquisadoras de ervas marinhas da Flórida. Ela é do Distrito de Gerenciamento de Água do Rio St. John e supervisiona o monitoramento e o mapeamento de ervas marinhas no Rio Indian.

No início de agosto, Hall levou um repórter do Orlando Sentinel em um barco para uma área da lagoa a seis quilômetros a leste de Titusville e a oitocentos metros dos pântanos que protegem o Centro Espacial Kennedy. 

Esse foi o mesmo repórter que havia sido levado aos locais há seis anos. Naquela época, o rio Indian já havia sofrido convulsões de perda de ervas marinhas. Mas, as ervas marinhas lá em 2015 ainda ofereciam um tapete verde para peixes-boi poderem se alimentar.

No passeio recente, Hall partiu com um snorkel e máscara em uma busca prática por ervas marinhas sob alguns metros de água. Ela relata que o que encontrou é o resumo de tudo que há de errado com a lagoa.

Principal fonte de alimentação dos peixes-boi no rio Indian, as ervas marinhas atualmente correspondem a apenas 1% da cobertura natural do fundo do rio. Imagem: Agência AFP

Segundo Hall, o fundo da lagoa lembrava muito areias do deserto. Em poucos locais, Hall identificou brotos de ervas marinhas da espessura de cílios, com míseros centímetros de comprimento e de coloração verde escura. 

Ela cita que encontrou um modesto rebote de alga marinha chamado Caulerpa, que pode ancorar o fundo arenoso da lagoa como um precursor para o retorno das ervas marinhas.

Hall ficou animada com as ervas marinhas que encontrou, embora fosse o equivalente a 1% da cobertura natural. “Estamos vendo esses trechos a cada 5 a 7 metros. Agora, só precisa preencher as lacunas”, disse ela.

Durante décadas, a lagoa foi atingida pelos males usuais da Flórida: águas pluviais urbanas, escoamento agrícola, fertilizantes agrícolas e de gramados, muitas fossas sépticas e sistemas de esgoto com vazamentos. A porção de lagoa de Brevard não sofre a descarga das marés. A poluição que escoa para o rio Indian permanece lá.

A poluição gerou surtos massivos, intermitentes e imprevisíveis de algas microscópicas, que escureceram a água e lançaram sombras letais nas ervas e algas marinhas.

Larry Williams, diretor ecológico do Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos EUA na Flórida, teme uma virada sinistra. “Existe a ideia de uma mudança ecológica para um estado estacionário alternativo. E o que eles querem dizer é que a ecologia anterior era um sistema de águas claras onde a luz do sol podia descer através da água e chegar às ervas marinhas”, disse Williams.

“Em outras partes do mundo, eles viram sistemas como esse mudar para um novo estado estável de água turva dominada por algas”, disse ele. “Alguns dos cientistas dizem que o que estamos vendo agora é uma transição oscilante para esse novo estado estável.”

Na última década, quase 58% dos tapetes de ervas marinhas desapareceram da lagoa do rio Indian. Os canteiros restantes contêm cerca de 10% da quantidade original de ervas marinhas.

Hall e outros funcionários do distrito de água rastreiam as mudanças nas ervas marinhas, seguindo uma rotina estrita de retornar aos mesmos transectos, ou em linhas retas da costa para águas mais profundas.

Existem 97 transectos na lagoa de até 1,4 mil metros, dependendo da extensão das ervas marinhas. O transecto onde Hall mergulhou se estendeu por 1,1 mil metros.

Recuperação deve custar em torno de US$5 bilhões

Ao todo, uma campanha para reviver águas claras, exuberantes ervas marinhas, ricos leitos de ostras e mariscos e populações prósperas de tartarugas marinhas e peixes-boi não será tão épica quanto refazer os Everglades — descritos como a maior correção natural do mundo — mas poderia estar na mesma liga.

Duane De Freese é diretor executivo do Programa Estuário Nacional da Lagoa do Rio Indian, uma colaboração de entidades federais, estaduais, municipais e outras partes interessadas. De acordo com ele, a lagoa pode ser reparada. “Isso exigirá cerca de US$5 bilhões e 20 anos ou mais”, disse.

“Precisamos nos concentrar muito no encanamento. Tanto águas pluviais urbanas quanto os maiores projetos regionais de águas pluviais. O replantio de ervas marinhas, ostras e mariscos aceleraria a restauração”, afirmou De Freeze. “Estamos em um início bem dirigido e corrido, mas temos uma longa corrida pela frente”.

Segundo a reportagem, alguns peixes-boi se dispersaram amplamente durante os meses de verão, mas é provável que muitos retornem. O motivo são as descargas de água quente da estação geradora Florida Power & Light Co., logo ao sul de Titusville ao longo da lagoa, que atraem os animais no inverno.

“O planejamento de ferramentas e técnicas para prevenir outra onda de mortes exigirá dezenas e dezenas de parceiros”, disse Gil McRae, diretor do Instituto de Pesquisa de Peixes e Vida Selvagem da Flórida. 

Patrick Rose, diretor executivo do Clube Salve o Peixe-boi,  disse que os drones podem ajudar na avaliação dos animais, assim como capturar alguns deles para um exame de saúde, embora isso possa ser arriscado para aqueles em má forma.

Conhecer a saúde do peixe-boi resolveria duas questões: o tamanho da resposta de resgate que pode ser necessária no inverno e a logística de uma alimentação em massa para os peixes-boi. “A logística de alimentação dos peixes-boi seria impressionante, inclusive para fontes de alface ou gramíneas aquáticas e o transporte necessário”, disse Rose. “Alimentá-los pode mudar o comportamento, e não de um jeito bom”.

Questões maiores incluem se o Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos EUA deve restabelecer os peixes-boi como ameaçados de extinção, o que o Clube Salve o Peixe-boi apoia. A agência, de forma polêmica, colocou a espécie em um status menos terrível de ameaçada em 2017.

Para Rose, o serviço de vida selvagem deve pressionar a Agência de Proteção Ambiental dos EUA a impor regras antipoluição mais rígidas para o rio Indian, como essenciais para garantir que uma restauração de US$ 5 bilhões seja bem-sucedida.

“Se isso pode ser feito por esse valor, é uma pechincha”, disse Rose. “É um investimento que não podemos deixar de fazer”.

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