Como retratar de forma profunda, atual e diferenciada o verdadeiro significado de ser um amigo em uma animação? Venhamos e convenhamos, filmes do gênero já exploraram a temática à beça e de vários jeitos possíveis – seja em 2D, 3D, de forma mais rasa analiticamente falando ou até mesmo subjetivamente, mirando mais o espectador adulto do que o público-alvo infantil, de fato. ‘Ron Bugado‘ escolhe o didatismo quase pedagogo e ambientação tecnológica para ensinar crianças de 0 a 100 anos um fator especifico incrivelmente pouco abordado neste tipo de produção: “a amizade é uma via de mão dupla”.

Mas antes mesmo fazer uso do quebrado robô Ron (Zach Galifianakis) e do solitário Barney (Jack Dylan Grazer) para exemplificar de forma mastigada o verdadeiro valor da amizade, a produção dirigida pela trinca de diretors Sarah Smith, Jean-Philippe Vine e Octavio E. Rodriguez tece duras críticas ao vício em redes sociais, a depressão e a ansiedade causada por tecnologia e, acima de tudo, às corporações por trás dos serviços que acessamos. Para uma animação infantil isso é estupendo, pois diferente de ‘WiFi Ralph: Quebrando a Internet’ que suavizou as questões citadas em apenas uma cena, o longa da 20th Century Studios dá a mensagem brutalmente – para crianças e adultos.

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Veja, na trama da animação um garoto tímido e desajeitado chamado Barney fica extremamente feliz quando finalmente consegue de aniversário um B-Bot, dispositivo conectado digital ultratecnológico que deveria ser “o Melhor Amigo Fora da Caixa” com o qual sempre sonhou. Porém, Ron chega muito “bugado” e, em meio à época escolar e das redes sociais, ter um dispositivo com erros de configuração e mau funcionamento é sinônimo de, bem, vergonha…

‘Ron Bugado’ e Barney ensinam ao público que “amizade é uma via de mão dupla”. Imagem: 20th Century Studios/Divulgação

No entanto, o roteiro de Smith com Peter Baynham (que escreveu o sucesso ‘Hotel Transylvania’) é sabiamente perspicaz em não focar os 106 minutos do longa na famigerada construção de relacionamento. Em pouco tempo, Barney já simpatiza com Ron e vê nele a salvação de qualquer pré-adolescente solitário: um semelhante com quem possa se aliar. Mesmo defeituoso, Ron ainda é inteligente o suficiente para aprender (ao menos da maneira dele) a como ser o melhor amigo possível e praticamente a maior parte cômica (e fofa) do filme está nos bugs, glitches e problemas que o B-Bot demonstra ou em seus entendimentos equivocados sobre a vida ao redor.

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Comédia extrapolada também é vista com Donka (Olivia Colman), a avó russa, amável, corpulenta e anti-Stalin (pois é) do protagonista. A adição dela em ‘Ron Bugado’ é bem-vinda e engraçadinha, propositalmente colocada para dar mais exagero ao filme e arrancar gargalhadas das crianças. O mesmo não pode ser dito de Graham Pudowski (Ed Helms), pai do Barney. O personagem cumpre o papel designado, claro, mas há algumas brechas no filme sobre a saudades que tem da falecida mulher e das dificuldades sobre ser um pai solteiro que poderia ter sido melhor exploradas.

O núcleo mais hilário, felizmente, complementa a animação de forma correta para dar o aspecto infantil necessário da obra e valorizar a mensagem. Ron e Barney são claramente os protagonistas e a amizade deles, como qualquer outra, tem os altos e baixos mostrados, mas de forma diferente das animações rotineiras: as brigas ocorrem porque apenas um lado valoriza o relacionamento ou até mesmo porque o garoto, em determinado momento, é incapaz de aceitar que o amigo tem um problema e precisa de conserto, por exemplo.

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Ron Bugado
‘Ron Bugado’, como todo boa animação, contém cenas fofas e hilárias. Imagem: 20th Century Studios/Divulgação

São pequenos detalhes que apontam uma abordagem mais destoada e única de ‘Ron Bugado’ e o diferenciam de animações sobre amizade que também foram únicas em 2021, mas ainda possuem tom semelhante ao que já vimos em filmes do tipo no passado, como ‘O Poderoso Chefinho 2‘ ou ‘Luca‘ – que valorizaram a fraternidade. Todos os aspectos destacados em uma ambientação que muito se parece aos dias de hoje (sem algo tão ultratecnológico tipo B-Bots, infelizmente) tornam a moral muito mais acessível para crianças e pré-adolescentes, ao mesmo tempo que conforta os jovens, pais e responsáveis em relação a uma boa lição sobre construção de relacionamentos.

Acredite: ‘Ron Bugado’ é a versão infantil de ‘O Dilema das Redes’ e…

Já assistiu o O Dilema das Redes? O documentário de Jeff Orlowski para a Netflix, aclamado pela crítica especializada em 2020 e nomeado a sete Emmy Awards, aborda as terríveis consequências de nossa obsessão e dependência das redes sociais, assim como aborda e tece críticas à vigilância, o capitalismo, o monopólio e a polarização, além de analisar os efeitos prejudiciais da mídia e internet em, praticamente, tudo, desde a autoestima à democracia.

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Ouso a dizer que ‘Ron Bugado’ cumpre exatamente os mesmos objetivos, de forma menos direta e com aspecto infantil para deixar a crítica mais pedagoga. No filme, os criadores da empresa chamada “Bubble” (Bolha) apresentam ao mundo os B-Bots como o aparato tecnológico mais intuitivo e completo do mercado, capaz de saber tudo sobre você acessando às redes sociais, aprender com suas pesquisas e likes diários, além de incluir câmera, microfone e etc.

Ron Bugado
‘Ron Bugado’ tece boas críticas às construções tecnológicas e vícios. Imagem: 20th Century Studios/Divulgação

O pior de tudo: é um gadget que tem como público-alvo infantil e juvenil – ao menos, é o que o filme se limita a mostrar. Obviamente, não precisa muito para a situação toda começar a dar errado e exibir problemas não tecnológicos, mas antiéticos. Em determinado momentos, os nomes em frente à empresa, começam a revelar que os clientes apenas são produtos para marketing e que os dados dos mesmos estão sendo utilizados de forma inadequada, além de demonstrarem por várias vezes que tem acesso 24/7 à imagem e som das crianças e adolescentes.

Claro que por ser uma animação com detalhes fantasiosos, isso pode passar batido. Porém, não é difícil compreender que o roteiro de ‘Ron Bugado’ é totalmente crítico ao monopólio das redes sociais e do modo como atuam. Em alguns momentos, o filme se mostra demasiadamente “pró-vida offiline”, praticamente culpando em 100% a “Bubble” pela falta de segurança online e o descomprometimento com os dados e informações (DE CRIANÇAS) adquiridos. É uma visão que os mais pequenos podem não entender na hora, mas que pré-adolescentes e mais velhos com certeza notarão e, possivelmente, ficarão chocados com a semelhança na vida real.

Da mesma forma que ‘O Dilema das Redes’, ainda há as boas críticas à presença na internet e nas mídias sociais. Além da performance offline de Barney por se sentir extremamente solitário por não ter um B-Bot e não estar conectado, há ainda a visão dos colegas de classe do protagonista. Uma colega é extremamente viciada em redes, lives e likes, e quando se torna viral por um motivo ruim, demonstra uma depressão palpável com a vida real, onde casos iguais acontecem com frequência. Por exemplificar com personagens infantis, a situação torna-se ainda mais incômoda.

Ron Bugado
‘Ron Bugado’ é ‘O Dilema das Redes’ para crianças? Imagem: 20th Century Studios/Divulgação

Há ainda dois rapazes quem são atentos à métricas e recordes que, ao não se tornarem tão relevantes no contexto digital, se mostram decepcionados. O filme ainda ironiza o conceito de matches logo no início, quando duas garotas deixam de ser amigas rapidamente porque os B-Bots mostram que elas não são compatíveis. Enfim, ao mesmo tempo que é engraçado conectar as situações de ‘Ron Bugado’ com a vida real, a sensação no fim do filme é um pouco angustiante. Afinal, se adultos – a cada dia que passa – se preocupam cada vez mais com os vícios online e etc, por que não começar a prestar cada vez mais atenção em como menores de idade utilizam de tal tecnologia?

Uma última lição crítica do longa é o quão as redes sociais, conhecidas por “aproximar as pessoas”, podem da mesma forma afastar. Barney e outros amigos de infância tornaram-se praticamente desconhecidos após a chegada dos B-Bots e há uma delicada cena em que o fator é evidenciado, próximo ao fim do segundo ato, e mostra que os coadjuvantes totalmente online, assim como o protagonista, estão solitários e necessitam de, bem, contato humano e offiline – algo que nem a melhor tecnologia do mundo pode suprir.

… por ora, a melhor animação infantil de 2021

Diferente de outras animações lançadas no ano, ‘Ron Bugado’ se propõe verdadeiramente a ser um filme infantil, de fato, mas com lições atuais e poderosas para todas as idades que pouco haviam sido abordadas. O destaque na amizade não aborda as tramas famigeradas já conhecidas, e sim contempla a necessidade de dois seres estarem no mesmo patamar para fazer o relacionamento dar certo. Afinal, a lição aqui é que a “amizade é uma via de mão dupla”.

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‘Ron Bugado’ é, por ora, a melhor animação infantil de 2021. Imagem: 20th Century Studios/Divulgação

Além do fator emocional, cabe às excelentes críticas ao vício em redes sociais, à depressão causada pelos infortúnios da tecnologia e aos monopólios das empresas do ramo, que tratam o ser humano mais como produto do que como alguém vivo. Os diretores da animação, claramente, beberam da fonte do documentário ‘O Dilema das Redes’ para simplificar uma preocupação que é muito válida a todos se atentarem – seja criança ou adulto.

Se isso não chamar a atenção, vá assistir ‘Ron Bugado’ no cinema pelas fofices (tiki, tiki, taka, tiki, tiki, tiki, taka), a boa qualidade de produção, um roteiro que deixa o coração de qualquer um “quentinho” ou mesmo pelas piadinhas que fazem todos caírem na gargalhada. Sob a alçada da Disney, a 20th Century Studios entregou a, ao menos por ora, melhor animação infantil de 2021 e clara favorita, junto a ‘Luca’, nas premiações no início do ano que vem.

Curtiu e não vê a hora de assistir ‘Ron Bugado’? O longa chega em 21 de outubro de 2021 nas salas de cinema em todo o Brasil – péssima data, vale ressaltar, pois além de ser 10 dias depois do feriadão que contempla o “Dia das Crianças”, ainda terá que enfrentar ‘Duna’, da Warner Bros., e ‘Halloween Kills – O Terror Continua’, da Universal Studios, pela bilheteria. Confira abaixo trailer e sinopse oficiais:

“‘Ron Bugado’ conta a história do jovem Barney, um menino de onze anos que tem dificuldade de fazer novos amigos, e seu companheiro Ron, uma inteligência artificial de alta tecnologia que anda, fala e é o “melhor amigo fora da caixa” de Barney. Mas quando Ron começa a ter seu funcionamento comprometido, os dois saem em uma aventura repleta de ação, onde a amizade entre os dois se mostra verdadeira.”

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