A ideia de se criar uma rede de satélites de baixo custo para fornecer internet de alta velocidade a qualquer parte do mundo é simplesmente fantástica e só poderia se tornar realidade por meio de alguém visionário (e multi-bilionário) como Elon Musk. A tecnologia desenvolvida na SpaceX permitiu a redução do tamanho e do custo dos satélites Starlink que, conjugado ao baixo custo de lançamento, criou um ambiente favorável para a implementação da ideia.

Só que, assim que os primeiros lotes de Starlink entraram em órbita, surgiu muita gente se questionando se todos aqueles satélites não poderiam trazer mais problemas que soluções para a humanidade.

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Os problemas estão relacionados à quantidade de satélites em órbita da Terra. De 2018 até agora, a SpaceX já colocou em órbita mais de 2 mil Starlink, mas já tem autorização para 12 mil e ainda pretende completar a constelação com 42 mil satélites, todos eles em órbita baixa. 

Isso aumentaria substancialmente o número de satélites em órbita da Terra, sem contar o lixo espacial. Mas o que isso poderia trazer de mal?

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Ninguém melhor para responder isso que a própria NASA. Em um relatório entregue no último dia 7 de fevereiro ao FCC, órgão do governo americano que regulamenta as telecomunicações, a NASA alerta sobre os riscos dessa infestação de satélites no espaço próximo à Terra. O documento é uma resposta à solicitação de expansão da constelação Starlink de 12 para 42 mil satélites. No documento, a NASA lista várias preocupações:

Congestionamento da órbita 

O congestionamento na órbita baixa terrestre aumentaria de forma substancial. Os 30 mil satélites adicionais pretendidos pela SpaceX, além de duplicar o número de objetos em órbita a serem rastreados, multiplicariam por 5 o número de objetos orbitando abaixo dos 600 km de altitude. Isso elevaria o risco de impacto desses satélites com os de missões científicas e tripuladas, transformando essa região do espaço em um local tão seguro quanto um cruzamento na Índia.

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Sobrecarga do controle e prevenção de impactos

Pedaços de lixo espacial em órbita são rastreados a partir da Terra e as conjunções (aproximação de dois objetos) e os riscos de impacto são monitorados automaticamente. Sempre que há uma chance de dois objetos se chocarem em órbita, um alerta é lançado e diversas equipes são mobilizadas para evitar o impacto.

Só que com o aumento significativo no tráfego de satélites, essas chances de impacto aumentariam significativamente, o que poderia provocar uma sobrecarga das equipes de prevenção. E qualquer falha nessa tarefa poderia provocar uma colisão, o que geraria uma quantidade ainda maior de detritos espaciais e, consequentemente, mais riscos de impacto.

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Potenciais impactos adicionais às missões científicas

A maioria dos satélites de observação terrestre orbitam a Terra acima dos 550 km em que os Satarlinks operam. Por isso, eles podem gerar reflexos indesejáveis nas imagens tomadas por estes satélites, reduzindo a qualidade de seus registros. 

Da mesma forma, os Starlink operam acima das órbitas de alguns telescópios espaciais como o Hubble e podem, em alguns casos, prejudicar exposições de várias horas destes valiosos e concorridos instrumentos. 

Rastro de um único satélite Starlink atravessando o campo de visão do Telescópio Espacial Hubble
Imagem: NASA / HST / Simon Porter

Além disso, a grande quantidade de satélites também podem interferir nas comunicações de rádio destes e de outros instrumentos em órbita da Terra.

Atrapalhar os programas de busca de asteroides

Os Starlink já tem aparecido bastante nas imagens dos programas de busca de asteroides próximos à Terra. Isso não tem interferido tanto por enquanto, mas a NASA acredita que, se o plano da SpaceX for concretizado, teremos ao menos um rastro de Starlink em cada uma das imagens obtidas por esses programas, diminuindo a eficiência das buscas. 

Grupo de satélites Starlink passando pelo campo de visão do Observatório Interamericano em Cerro Tololo, no Chile
Imagem: CTIO / NOIRLab / NSF / AURA / DECam DELVE Survey

As trilhas de satélites não são novidade nos programas de busca de asteroides, e elas só atrapalham se os satélites passarem exatamente em frente ao asteroide, ocultando o brilho da rocha espacial. Entretanto, com o aumento da frequência com que os satélites cruzam o campo de visão desses telescópios, a possibilidade de algum asteroide passar batido pelas buscas se torna maior. 

Potenciais problemas por interferência de rádio

A faixa de frequência em que os Starlink operam ou sobrepõe ou é adjacente às frequências suportadas pelo sistema de satélites de rastreamento e retransmissão de dados (TDRSS) da NASA. Isso significa que, se a expansão da constelação for autorizada pelo FCC, isso pode prejudicar sensivelmente a comunicação entre a NASA e o TDRSS. 

O efeito na prevenção de colisões em lançamentos

Por fim, a NASA alerta ainda para a redução das janelas de lançamento para evitar o choque com esses satélites congestionando nossa órbita. Dos 30 mil satélites adicionais previstos para a expansão da constelação Starlink, cerca de 20 mil devem operar em altitudes entre 328 e 360 km, o que está abaixo da Estação Espacial Internacional (ISS).

Estação Espacial Internacional orbita em torno de 400 km de altitude, acima de cerca de 20 mil satélites previstos para a expansão da Starlink
Imagem: NASA / STS-135

Isso significa que quaisquer lançamentos para a ISS, seja de carga, seja para troca de tripulação, bem como as viagens de retorno à Terra, deverão ser agendadas de forma a evitar a aproximação com algum dos satélites da mega-constelação da SpaceX. Como resultado, as janelas de lançamento (período adequado para o lançamento de um foguete) devem ser reduzidas. 

E isso teria impacto não só nas missões à Estação Espacial Internacional, mas também em outras missões científicas, especialmente naquelas cujas janelas de lançamento são curtas, como a Europa Clipper

NSF reforça preocupações da NASA

Também em resposta à solicitação de expansão da constelação Starlink, a NSF — National Science Fundation (uma agência federal americana independente criada para promover o progresso da ciência) reforçou as preocupações com os impactos na ciência, caso a expansão seja autorizada. 

A NSF cita as produtivas conversas desenvolvidas com a SpaceX e os esforços da empresa na implementação de soluções para redução do brilho dos Starlink. Entretanto, a agência destaca que os maiores prejudicados seriam os grandes observatórios rádio-astronômicos, que são tradicionalmente instalados em regiões remotas para evitar a interferência de outras fontes de rádio. Com a expansão da Starlink, esses radiotelescópios passariam a ter a interferência de inúmeros satélites, transmitindo ao mesmo tempo enquanto cruzam o espaço monitorado por eles.

Atacama Large Millimeter Array (ALMA), um conjunto de radiotelescópios no Deserto do Atacama, no Chile
Imagem: ESO

Perigo das reentradas

Outro problema, que não foi citado pela NASA, é o risco envolvido nas reentradas. A operação dos satélites Starlink é completamente autônoma (salvo raras exceções). E quando detecta algum problema irreversível, ele automaticamente executa uma manobra de deorbitação, para que o satélite problemático seja destruído na reentrada atmosférica e não vire lixo espacial. 

A SpaceX garante que o Starlink é 100% vaporizado durante a reentrada, o que evita qualquer prejuízo ou risco para a população em solo. O problema é que, durante a deorbitação, ele acaba cruzando as órbitas de outros objetos, oferecendo risco a outros satélites, à Estação Espacial Internacional e à Chinesa também. 

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Ainda no ano passado (2021), dois satélites Starlink quase colidiram com a Tiangong, a Estação Espacial Chinesa durante uma manobra de deorbitação. Com a expansão da constelação, a tendência é que episódios como esse se tornem ainda mais frequentes, reduzindo a segurança das tripulações das estações orbitais.

Por sinal, a frequência com que essas reentradas têm ocorrido já causa certa preocupação. Agora em fevereiro, a empresa informou que, de uma só vez, vai perder 40 satélites por conta de uma tempestade geomagnética. Nenhum deles deve oferecer risco, pois todos são do lote de 49 satélites lançados em 3 de fevereiro, e que não atingiram, nem atingirão, sua altitude operacional de 550 km.

Reentrada do Starlink-32 registrada em Nhandeara, São Paulo
Imagem: Renato Poltronieri / BRAMON

Entretanto, antes mesmo dessa “chuva de Starlink” ocorrer, vários outros satélites da constelação já estão reentrando, quase que diariamente em nossa atmosfera. Como exemplo, no mês de janeiro de 2022, foram 21 reentradas de satélites da SpaceX.

Felizmente, a maioria deles vêm sendo tirados de órbita para abrirem espaço para os satélites mais atualizados, porque se fosse mantida essa proporção, se a constelação fosse expandida para 42 mil satélites, teríamos mais de 400 reentradas por mês. 

IDA, IAU e ONU também se mobilizam contra mega-constelações

A IDA (International Dark-Sky Association) é uma associação que busca a conscientização das pessoas sobre os efeitos da poluição luminosa em nossas cidades, que além de trazer problemas para a saúde humana e de outros animais, também priva boa parte da humanidade do prazer de contemplar um céu verdadeiramente escuro e estrelado. 

Desde 2020, a IDA manifestou suas preocupações com o crescente número de satélites em órbita e os planos de expansão das mega-constelações de satélites. Além dos problemas listados anteriormente, a associação entende que essas mega-constelações também são uma espécie de poluição luminosa, que vai impactar não só nos trabalhos científicos, mas também na astronomia amadora e o público em geral, que acaba sendo privado, cada vez mais, do acesso ao céu escuro.

Astrônomos e representantes da IDA em coletiva de imprensa durante painel “Astronomia Confronta Constelações de Satélites” no 235° encontro da American Astronomical Society. Imagem: IDA

A IAU (International Astronomical Union) também está se mobilizando para tentar impedir a expansão das mega-constelações como a Starlink. Para isso, criou o Centro para a Proteção do Céu Escuro e Silencioso da Interferência de Constelação de Satélites. O Centro reúne astrônomos, operadores de satélites, reguladores e a comunidade em geral e tem como missão coordenar esforços e unificar vozes em toda a comunidade astronômica global no que diz respeito à proteção do céu.

Quem é dono do Céu?

Além disso, há outras questões menos técnicas, mas que merecem ser discutidas: a quem pertence o céu acima das nossas cabeças? Qualquer um que tenha capacidade financeira pode infestar nossos céus com satélites, causando poluição visual e eletromagnética para todos? 

Atualmente, não há tratados internacionais visando limitar a ocupação do espaço. Dessa forma, a órbita é alocada por ordem de chegada, e será responsabilidade dos que chegarem depois garantir que seus satélites não colidam com os existentes.

Vejam que, até aqui, falamos apenas do Starlink, que é o projeto mais avançado no momento. Mas existem outras mega-constelações sendo planejadas por chineses, e outras empresas, como a Amazon e a OneWeb. Se todos forem executados conforme o planejado, infestarão ainda mais nosso espaço com dezenas de milhares de novos satélites. Será que uma internet mais rápida valeria mesmo esse custo para a humanidade?

ONU já discute o assunto

Independente de qualquer coisa, essa é a melhor hora para discutir o assunto antes que seja tarde demais. E isso já vem sendo feito pela ONU que, em conjunto com a IAU, criaram o workshop Dark and Quiet Skies for Science and Society para discutir alternativas para as mega-constelações de satélites. 

Foto panorâmica da Via Láctea sobre o Grande Telescópio das Canárias em La Palma, Espanha
Imagem: Daniel López / IAC

Na motivação para o workshop, a ONU destaca a importância da observação do céu para a humanidade em todas as suas expressões intelectuais e emocionais: poesia, filosofia, religião e ciência. E curiosamente, aponta que mega-constelações de satélites como a Starlink (cuja tradução do nome significa “ligação com as estrelas”), poderiam justamente nos desconectar das estrelas. 

O grupo reunido neste workshop deve produzir um documento que descreve quais medidas os governos e as empresas privadas podem adotar para mitigar o impacto negativo dessas constelações na astronomia sem diminuir a eficácia dos serviços que oferecem aos cidadãos. 

É difícil prever o resultado dessas ações. Talvez até impeçam a expansão da Constelação Starlink, mas, mesmo que ela seja definitivamente abolida, a humanidade não seria tão seriamente afetada pela falta de mais um provedor de banda larga. Da mesma forma, isso não tornaria o Elon Musk nem menos bilionário, nem menos genial do que ele já é.

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